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domingo, 20 de dezembro de 2009

A PRÁTICA VIEWPOINTS:ESTRATÉGIAS INVESTIGATIVAS



Foto: Camila Carneiro Este ano eu tive o primeiro contato com a prática viewpoints com Donnie Mather no II ENGRUPE DANÇA, em outubro no Rio de Janeiro.
Essa prática me foi apresentada também por Fabiano Lodi e sistematizada pela diretora teatral americana Anne Bogart. A prática foi criada anteriormente por Mary Overlie na década de 1970, segundo Lodi, num bate papo informal durante o workshop. Lodi cita que Overlie foi influenciada pelas propostas experimentais de um grupo de artistas do qual fazia parte, a Judson Church Theater na década de 60.
Pela prática na sala com a aula de Mather , pude perceber a possibilidade de um exercício compartilhado e essencialmente investigativo a ser desenvolvido durante um processo artístico ou uma aula de dança.

“Neste sentido,os Viewpoints como prática teatral
na disciplina de Artes na escola se configuraram
como um caminho para o olhar sobre a relação com
o espaço que os envolve, com o próprio corpo, o corpo do outro,
a relação destes corpos no mesmo espaço,
a consciência do trabalho em grupo, ajuda mútua,
cooperação e a influência deste trabalho no convívio cotidiano”
(LODI, 2007, p.3)

Viewpoints tem como tradução literal pontos de vista, são desdobramentos dos Six Viewpoints (espaço, história, tempo, emoção, movimento e forma), sistematizados por Mary Overlie. No primeiro momento de experimentação pude compreender a questão do ponto de vista, ou seja, não quero dizer que essa tradução deva ser literal mas a concentração e a escuta ao outro são necessárias para execução do exercício me fez refletir sobre a possibilidade de se fazer cada coisa em um momento, fruto de uma constatação/conhecimento pessoal.Esse exercício de ouvir/sentir o outro intensifica o processo colaborativo de criação, referindo assim a uma negociação.“O corpo em constante negociação vive da aquisição de novos conhecimentos, uma vez que as disposições são continuamente modificadas”. (MACHADO,2007,p.19).
Assim, para agir preciso “olhar o outro” perceber o outro e escutar o outro.
O foco da improvisação se encontra no ambiente, nesse entorno, na relação com o outro. Nesse momento Mather cita “Um som só tem a altura no silêncio dos dois lados” (JOHN CAGE).
Refletindo, é necessário acordar tudo e todos e o corpo está ali, ouvindo,andando, pulando, correndo, caindo e recuperando.Me pergunto como trabalhar técnica e recuperação nessa prática?
Queda e recuperação precisam de certa forma de ajustes corporais para se fazer, um fortalecimento da musculatura esquelética, como também uma ação investigativa nas articulações. Isso pode acontecer perfeitamente durante o exercício de viewpoints durante as experimentações, ou especificamente somente na investigação.
As articulações são utilizadas para amortecer e proporcionar ao movimento de ação corpórea uma qualidade orgânica de cair e recuperar orgânicamente conseqüentemente ampliando sua capacidade/possibilidade investigativa.
A liberdade nesse processo é aparentemente solta, mas se encontra atrelada nas relações que acontecem durante todo o exercício improvisacional. As várias repetições não se tornam enfadonhas como em aulas de técnica, se tornam crescentes e a sensação é de que a performance está sendo construída reorganizando-se em todo o espaço, confortavelmente tomando conta da cena.
“Todo relacionamento entre pessoas, idéias ou qualquer outra coisa, instaura-se a partir de pontos de conexão advindos de algum tipo de similaridade entre as propriedades dos termos relacionados. Até mesmo a mais esdrúxula fantasia concebida baseia-se em dados da realidade percebida”(BRITTO,2008, p.12)
A dança é uma experiência cognitiva que opera em fluxo contínuo corpomente, sem a separação de movimento e pensamento, constituindo o que estudamos como teoria corpomídia (Katz & Greiner, 2005). Ela nos ajuda a entender que para qualquer que seja o treinamento de dança, o pensamento é entendido como o jeito que o movimento encontrou para se organizar, se apresentar, o que acontece durante toda a prática dessa técnica.
Numa pesquisa para universitários esses exercícios se apresentam não como uma fórmula/receita/modelo que dará certo, mas como uma proposta colaborativa/investigativa de aprendizagem que tem o umwelt como facilitador na quebra de cadeias habituais.
Lodi(2007, p.2), cita: “Viewpoints permite ao coordenador de uma prática corporal a diversidade de associações entre atividade física e artística, identificando socialmente princípios trabalhados nas aulas, bem como discutindo o nosso comportamento corporal nas aulas, na rua, em casa, com os amigos, entre outros”
Outras práticas podem ser experimentadas conjuntamente como essa técnica como Pilates, capoeira, contact.Nesse sentido essa prática para o dançarino reforça a busca à autonomia, conhecimentos e informações para enriquecer seus processos colaborativos de criação em dança. Enfim um exercício colaborativo que emerge das conexões estabelecidas conseqüentemente um exercício de adaptação e compartilhamento das propriedades emergentes nesse sistema dança . Nesse sentido teoria e prática se encontram numa co-relação em que para o ensino/pesquisa para dança, quer seja em escola infantil ou no curso de graduação se constrói argumentos na prática.Trazer referências teórico/práticas sobre as relações que se constroem no fazer educativo/artístico/criativo fomenta reconhecer a importância da teoria na arte como também da prática colaborativa/investigativa no exercício de dança.

Citações:
1.Donnie Mather trabalha há 12 anos com os métodos Suzuki e Viewpoints com Anne Bogart diretora da Siti Company.
2.Fabiano Lodi escreveu esse artigo como resultado final do seu projeto de pesquisa O corpomente em cena: as ações físicas doator/bailarino (2007/2008), desenvolvida no Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de SantaCatarina (UDESC), coordenado pela Professora Dra. Sandra Meyer Nunes.
3.Bogart,Diretora da Siti Company. “Anne Bogart conheceu Mary Overlie em 1979 na Universidade de Nova Iorque e lá tomou contato com o seu modo próprio de estruturar tempo e espaço na improvisação em dança, que Overlie aplicava não somente na composição coreográfica como na sua metodologia de ensino.(...) Bogart conheceu Tina Landau no American Repertory Theatre, em Massachusetts,desenvolveram gradativamente um trabalho colaborativo ao longo de dez anos com os Six Viewpoints de Overlie aplicados ao teatro, expandindo para os nove Viewpoints”.(LODI, 2007, p.2).
4.Judson Dance Theater foi um grupo experimental de dançarinos da década de 60, considerados pós-modernos.
5.Mather participou do II ENGRUPE DANÇA: Diálogos e Dinâmicas no Rio de Janeiro, em outubro de 2009
6.São nove Viewpoints físicos (andamento, duração, relacionamento espacial, repetição, resposta sinestésica, forma, gesto, topografia e arquitetura.
7.Teoria Corpomídia, teoria desenvolvida pelas pesquisadoras Helena Katz e Christine Greiner. Essa teoria trata o corpo, não como um recipiente, mas implicado no ambiente o
que cancela a possiblidade de entendimento do mundo como um objeto fechado.
O corpo se apresenta nesse processo co-evolutivo de trocas com o
ambiente em fluxo que não estanca, no estado do sempre presente.
8.“Umwelt, termo proposto pelo biólogo estoniano, Jakob Von Uexkull, para designar a forma como determinada espécie interage com o seu ambiente.O Umwelt seria assim uma espécie de interface entre o sistema vivo e a realidade, interface esta que caracteriza a espécie, função de sua particular história evolutiva”(VIEIRA, 2006,p. 78).
9.“Um sistema pode ser conceituado como um agregado de elementos que são relacionados entre si ao ponto de partilha de propriedades. (...) Quando estudando estidades complexas, como obras de arte, encontramos a necessidade de conciliar coisa em princípio simplesmete diversas, mas que no contetxo da criação ganham coerência e vêm a formar todos altamente significativos”(VIEIRA, 2006, p.88).

REFERÊNCIAS:

BRITTO, Fabiana Dultra. Paisagens do corpo. In: Corpo e ambiente. Co-determinações em processo. Cadernos PPGAU/FAUFBA, Salvador: EDUFBA, v. 1, 2008.
KATZ, Helena; Greiner, Christine. Por uma teoria do corpomídia. In: ______. O corpo: pistas para estudos interdisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
KATZ, Helena. Um, Dois, Três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID, 2005.
LODI, Fabiano. A prática viewpoints na escola: uma proposta de trabalho corporal na disciplina de artes. artigo escrito como resultado final do projeto de pesquisa O corpomente em cena: as ações físicas do ator/bailarino (2007/2008), desenvolvida no Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), coordenado pela Professora Dra. Sandra Meyer Nunes.
MACHADO, Adriana B. O Papel das imagens nos processos de comunicação: ações do corpo, ações no corpo. 2007. Tese (Doutorado) – PUC, São Paulo.
VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento- arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão, 2006.

domingo, 8 de novembro de 2009

UM OLHAR SOB O EXTRAORDINÁRIO COTIDIANO:ESTRÁTEGIA PARA SE FAZER DANÇA.



















Fresta (Fernando Pessoa)

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.




Imagens, lugares, poesias e brinquedos tranformados em dança.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

UM PENSAMENTO QUE SE REVERBERA!

Sobre Conexões


Foi com muito prazer que participei da curadoria seletiva da 6ª Bienal SESC de Dança, pois vivendo e trabalhando há vinte anos fora do meu país, tive a chance, durante esses três dias intensos de seleção, de poder ver, analisar e entender bem de perto a atual produção da dança nacional.

Constatei, porém, com certo pesar, que o número de produções tende a ultrapassar o número de criações. Encontrei muitas propostas vazias de conteúdo. Percebi as buscas, as tentativas, sobretudo as pesquisas e poucos achados. E perguntei-me: o que será que fundamenta a expressão da dança hoje em dia?

Descobri que esta não é só uma questão pessoal e sim de muita gente. Sobretudo do Sesc que, nesta iniciativa de apresentar uma Bienal sobre Conexões, busca encontrar respostas instigando seus participantes a investigar e explorar a arte da dança em relação ao espaço físico e ao espaço das relações humanas.

Mas será que podemos chamar de arte as buscas, pesquisas e tratados que fazem parte de todo processo de criação? Há tempos atrás uma grande atriz me disse: “ache, depois procure!” É nisso que acredito: primeiro criar e depois cuidar, lapidar, aperfeiçoar, analisar! Acredito também no famoso lema: menos é mais! Lema esse, a meu ver, necessário em todos os setores da vida contemporânea! Hoje tudo é muito: muito barulho, muita dívida, muito cansaço, muito stress, muita informação. Hoje temos muito pouco do silêncio, do pé de meia, da tranquilidade, da qualidade, da profundidade.

Na verdade desejei que esta Bienal se apresentasse cheia de espaços em branco. Espaços estes que teriam a função de estarem disponíveis para uma conexão com o vazio e com o pouco. Esses vácuos estariam assim, quem sabe, despertando curiosidade no público e nos artistas e, consequentemente, provocando uma maior reflexão sobre o tempo que vivemos e sobre a dança que fazemos. Sei que corro o risco de ser julgada pretensiosa, antidemocrática e elitista pensando assim, mas não seria mais instigante?

Chego a pensar que um dos fatores regentes desta grande proliferação de projetos seja a política de fomentos. Na década de 80 a possibilidade de se conseguir um patrocínio para um trabalho era um sonho ridiculamente quixotesco. Hoje este sonho se torna realidade: a dança está sendo agraciada por um número grande de subvenções e incentivos. No entanto, são poucos os trabalhos que realmente provocam “aquele não sei o quê” que mexe com a gente, que nos alerta sobre algo, que nos inspira a fazer algo, que faz com que a gente não tenha vontade de ir embora do teatro após o espetáculo!

Que me perdoem os artistas participantes e a própria direção do Sesc por esta minha crua e antidiplomática franqueza! Ela provém do grande respeito e amor que sinto pelo exercício desta profissão tão árdua e tão querida. Por isso, mesmo estando um tanto desiludida, junto-me à proposta do Sesc de apresentar para o nosso público um panorama bem abrangente da dança que se faz hoje no país. Talvez após a vivência destas conexões, descobrir-se-á o que realmente nos conecta com esse “algo mais” que todos nós buscamos. Sou solidária também aos meus colegas desta curadoria, na certeza de que nossos escolhidos buscarão, com toda a verdade a que se propõem, conectar suas pesquisas aos espaços escolhidos na sede do Sesc Santos e nos cantos pitorescos desta importante cidade da cultura paulistana.
Sônia Mota – setembro de 2009


Sônia Mota nasceu em 1948, São Paulo/ Brasil. Nas décadas de 70 e 80, exerceu um papel decisivo na dança contemporânea brasileira como bailarina, professora e coreógrafa. Mudou-se em 1989 para Colônia na Alemanha e até 2004, trabalhou exclusivamente como professora de dança para diversas escolas e companias profissionais da Europa. Em 2005 Sônia retornou ao palco com o solo VI-VIDAS , 1a parte da sua trilogia sobre o feminino na sociedade contemporânea. O duo QuaaDriDuuo, 2a parte da trilogia, entra em cartaz em 2007. Nesta produção Sonia questiona a relação do casal na esfera privada social. Em 2009, Sônia completará sua trilogia com TRISTEZA & JOSEFINE uma poesia dançante sobre as relações entre mães e filhas. Vi-vidas foi nomeado em 2005, como um dos cinco melhores espetáculos de dança da cidade de Colônia.

Fonte:http://www.mostrasescdeartes.com.br/bienaldanca2009/?p=340

sábado, 24 de outubro de 2009

Estrangeiro do Piauí




“Tenho 206 ossos, 639 músculos, uma cabeça, dois olhos que piscam 25 mil vezes por dia. Tenho uma língua que é o órgão mais potente do meu corpo. Tenho um coração que bate três mil vezes por dia, dois rins que valem uma fortuna, 96.500 quilômetros de veias e artérias, dois pés que podem me levar a qualquer lugar, 50 milhões de células, 100 bilhões de neurônios, mas o meu boi morreu, o que será de mim?” Com essas palavras, Marcelo Evelin inicia no palco uma invocação ritualística que dará forma a um boi contemporâneo, resistente e transformado pela passagem dos anos. Manifestação originalmente do Piauí e mais tarde abraçada pelo Maranhão, o boi é o mote para as questões levantadas em Bull Dancing – Urro de ómi boi (fotos), uma co-produção Brasil-Holanda, estreada em 2006.

Criador da Cia. Demolition Inc, em Amsterdã, o coreógrafo de 41 anos, nascido em Teresina, no Piauí, engrena aos poucos uma volta à sua cidade natal. Lá dirige o Núcleo do Dirceu, espaço formado por coletivos de artistas vindos da dança, da música, do teatro e do hip-hop. Toda quarta-feira desde janeiro de 2006 acontece um espetáculo improvisado no Projeto Instantâneo, além da Mostra do Dirceu. Embora exista há somente três anos, o espaço promete ser um divisor de águas ao sugerir uma nova forma de pensar a dança. Quem não conhece ficará surpreso em descobrir esse terreno fértil no Dirceu, bairro distante da periferia de Teresina. Em 2008, Evelin marcou presença também com Mono, sua mais recente e inovadora produção, que teve estreia em Amsterdã e São Paulo. Em novembro, assinou ao lado de Adriana Grechi a direção artística da primeira edição do Festival Contemporâneo de Dança, que reuniu artistas de diversos países na Galeria Olido, em São Paulo. A terceira parte da trilogia iniciada em 2004 com Sertão e mais tarde com Bull Dancing, deverá chegar aos palcos até 2010 e abordará a brasilidade em outras culturas.

Vamos começar pela mais difícil. Para você, o que é um espetáculo de dança?

Acho que um espetáculo de dança é a colocação do corpo nesse cruzamento de idéias, ações e pensamentos gerados no corpo. É a organização dessa influência do pensamento do próprio corpo dentro de um tempo e de um espaço bastante específicos. Uma linguagem não tão conhecida, mas extremamente potente no sentido de realmente revelar e de dizer coisas.

Você nasceu em Teresina, no Piauí. Imaginava que viveria de dança?

Nunca. Apesar de ter passado a minha infância no Rio de Janeiro, vi a primeira aula de balé aos 14 anos, já de volta à Teresina. Nessa época, só existia balé e eu achava que a dança era só isso. Tive a sensação de que eu jamais poderia me encaixar naquela estrutura. O que eu mais gostava era dos ‘port des bras’. O movimento dos braços sempre me impressionou. Cheguei até a pensar que um dia eu pudesse fazer uma dança só de braços [risos]. Só fui conhecer a dança contemporânea mais tarde, quando voltei para o Rio de Janeiro, aos 17 anos. Tive a sorte de começar com o Klauss e a Angel Vianna, que me direcionaram com relação à conscientização do meu próprio corpo e à dimensão do que pode a dança como linguagem. Em 1980, as idéias do Klauss a respeito do que seriam os espetáculos do futuro foram muito importantes para mim. Tive aulas também com a Graciela Figueiroa, do Grupo Coringa, recém chegada de Nova York. Uma pessoa que trazia uma bagagem dos norte-americanos dos anos 70 e que também abria um espaço para a compreensão do movimento. Isso foi muito importante já no início. Comecei direcionando o meu trabalho corporal, a minha construção física, com uma idéia muito precisa de linguagem de espetáculo.

Você foi para a Europa aos 24 anos. Porque decidiu partir e como foi essa experiência?

Eu sempre pensei em sair, sempre quis viajar e estudar em outros lugares. E a gente recebe muita informação vinda da Europa com relação à dança, principalmente a dança contemporânea. Em 1980, eu vi a Pina Bausch pela primeira vez no Brasil. Eu fiquei muito impressionado com aquele trabalho porque realmente misturava dança com o teatro numa época em que não se falava em dança-teatro no Brasil. Vi Café Müller, Kontakthof e Sagração da Primavera duas vezes cada de tanto que gostei do trabalho. Acho que a Pina Bausch foi a minha ignição para essa viagem. Com essa referência comecei a pensar mais na Europa. Em 1995, ganhei um prêmio pela minha primeira coreografia em São Paulo, um musical infantil, Chama Amazônica, um trabalho muito intuitivo, sem nenhuma técnica de coreografia. Eu não tinha a idéia de ser coreógrafo, mas o trabalho foi muito elogiado e analisado com conceitos que eu não conhecia. Nesse momento resolvi sair porque achei que precisava ter um embasamento técnico maior para o que eu estava fazendo. Em Paris, entrei numa escola que tinha um programa bem livre de dança contemporânea, o Studio Ménagerie de Verre. Lá consegui me situar com relação às possibilidades da dança contemporânea, de um trabalho mais autoral – conceitos menos explorados no Brasil nessa época. Conheci um bailarino que dançava com a Pina há dez anos e que estava montando a companhia dele em Amsterdã. Ele me chamou para fazer parte do grupo a princípio por seis meses e fui ficando. Em seguida, fui para Wupperthal e conheci a Pina Bausch. A primeira coisa que fiz foi pedir para ficar na companhia – puxando pela ponta do casaco, que nem menino [risos]. Ela me deu a possibilidade de ser estagiário da companhia por um tempo e no fim das contas passei nove meses em Wupperthal. Foi muito bom, muito importante para mim.

O que você aprendeu com ela?

Aprendi uma certa simplicidade, uma certa verdade no trabalho. A Pina realmente tem essa coisa que já virou um clichê no trabalho dela: “não estou interessada em como as pessoas se movem, mas no que move as pessoas”. E isso é uma coisa que é realmente levada às últimas conseqüências dentro do trabalho. Ela tem essa atenção com o que está sendo produzido pelos bailarinos, de buscar uma pessoalidade, um cantinho que a pessoa não foi ainda, além de todo um método de trabalho de formulação de questões a partir do qual se improvisa. Essa pessoalidade até hoje é muito importante para mim.

Qual a principal marca do seu trabalho?

Passei por fases. Já fui muito influenciado por literatura, poesia e romance. E também sempre tive uma relação com a cultura brasileira, mais esporadicamente no início e nesses dois últimos espetáculos – Sertão e Bull Dancing -, mais diretamente. Sempre quis me relacionar com o Brasil através do meu trabalho e sempre achei muito difícil fazê-lo sem cair no bairrismo, numa coisa de vender o Brasil como um lugar exótico, esse sol, essas palmeiras e os sabiás. Acho que minha situação de estrangeiro também trouxe muitos novos elementos. Estar deslocado – tanto na Holanda, quanto no meu próprio país – é um estado que tenho usado sempre.


O que precisa ser mais visto na cultura popular?

A cultura popular tem uma força muito grande por sobreviver a esse mundo contemporâneo. É muito interessante ver pessoas ainda hoje dançando boi – pessoas que acessam internet, fazem ultra-sonografia e andam de avião. Esse fator resistência que tem atravessado décadas ou mesmo séculos – no caso do boi são dois séculos -, sempre me intriga. O que é que tem aí que se mantém por tanto tempo, embora transformado, com upgrade? Não tenho nenhuma relação com a cultura popular no sentido de defendê-la. Inclusive, eu não gosto da idéia de tratar a cultura popular como alguma coisa à parte, que tem que ser defendida. Essa coisa imaculada com ela. Mas ao mesmo tempo tenho respeito por uma cultura que se mantém e que foi feita não por um pensamento estrategista, mas que surgiu de uma relação do ser humano com o próprio meio. Eu não saberia dizer o que precisa ser mostrado, mas o que eu tenho trabalhado são pontos ainda discutíveis hoje. Com a pesquisa para o Bull Dancing descobri questões que o próprio auto do boi traz, como a violência, a desigualdade social, a descriminação, a “patente” do boi e a posição da mulher na sociedade – há menos de 110 anos a mulher não podia virar boi – a figura da Catirina era feita apenas por homens. Tenho também uma enorme atração pela música do boi, a simplicidade e a força da batida, mais arcaica, primitiva, que para mim se assemelha aos novos beats. E pela dança, simples como configuração espacial, mas muito específica em relação ao que considero a dança brasileira a nível de organização do corpo.
Como você vê a atual produção brasileira de dança?

De forma muito otimista. Somos um povo mais expressivo e expansivo corporalmente e a facilidade com uma linguagem de dança já começa daí. A dança do Brasil está começando realmente a se verticalizar. As pessoas estão estudando muito, lendo, escrevendo, usando outras linguagens ou até mesmo a ciência para conceituar seus trabalhos. Existe um bom desenvolvimento na parte de festivais, de encontros e mostras, trocas e diálogos – o idança, por exemplo, não existe na Holanda! Lá existe muito menos espaço para diálogo do que aqui. Fico realmente impressionado com o fato da dança brasileira estar encontrando relação com outras áreas. Acho que ela está num momento muito interessante. Tenho uma confiança de que vamos conseguir fazer muita coisa nos próximos dez anos porque o mercado europeu está começando a se saturar. Sinto que a dança no Brasil está começando a se juntar às questões do indivíduo na sociedade de uma forma muito contundente e precisa. Pode ser que as pessoas achem que seja um otimismo de quem vem de fora, mas não é. Só gostaria que as políticas culturais fossem mais amplas e democráticas e tivessem maior continuidade. O problema do Brasil é que as pessoas se detêm muito na idéia de celebridade. Parece que precisam ser celebridades antes de realmente processarem suas questões no trabalho.

O que é o Núcleo do Dirceu?

Em 2005, fui convidado pela prefeitura de Teresina a assumir um teatro escola na periferia, que hoje passou a ser chamado Teatro Municipal de Teresina João Paulo II. Na época, propus a criação de uma plataforma de geração e troca de informação menos hierarquizada, onde se investisse em novos criadores para, a longo prazo, começar a forçar o mercado de arte numa cidade pequena, árida e isolada como Teresina. Dois meses depois de ter assumido o teatro, consegui da prefeitura bolsas para manter um grupo de 18 artistas com experiências e idades diversas para estarem no teatro 20 horas por semana num projeto de formação. Eles tiveram aulas comigo e entraram em contato com artistas estrangeiros em workshops, palestras e espetáculos. Ficamos dois anos nesse trabalho de formação e tivemos a sorte de ter bons profissionais passando por lá ensinando desde técnica Limón, até teatro físico, vídeodança, produção, elaboração de release e yoga, um pouco de tudo. Essa formação acaba em fevereiro deste ano e a forma de mantê-los ativos foi através da criação de um coletivo, estrutura que vem sendo muito falada no Brasil. O núcleo transmite a informação ao centro de criação, que atende quase 350 pessoas da comunidade, entre crianças, adolescentes e terceira idade. Agora estamos tentando esgarçar o mercado de trabalho em Teresina para a arte contemporânea, que é uma linguagem completamente nova. Acredito muito na comunicação que pode ser gerada na diversidade, muito mais do que na idéia de homogeneidade. Acho que precisamos desse confronto para ir mais fundo no que a gente faz. Não consigo ver dança sendo feita hoje em dia que não seja baseada justamente nesses contrastes. A única coisa que temos como foco principal é o corpo. Ele continua sendo um ponto central, de onde diverge muita coisa. Estamos começando a entrar por debaixo da porta feito fumaça. Não vejo o que nós estamos fazendo como um divisor de águas. O processo de contaminação no mundo é totalmente presente hoje em dia.

Como é estar fora do eixo Rio-São Paulo?

A idéia de trabalhar numa periferia no Brasil foi o que me instigou. Sempre penso em periferia como esse aglomerado de fora que possui uma potencialidade muito grande. Penso geralmente como a pele, que é o lugar por onde a gente respira, por onde a informação entra. Foi absolutamente tentador propor um trabalho de arte contemporânea num lugar assim.

O que ainda quer realizar como artista
?

Quero trabalhar até o final. Quero chegar mais próximo da idéia de arte como ignição para as questões discutidas na sociedade. Gostaria cada vez mais de trocar com outras culturas e de viajar. Existem alguns lugares do mundo que ainda não conheço. Quero ir para o Japão. Estou estudando o kabuki e o butô porque sinto que existe uma relação desse arcaico japonês com o arcaico brasileiro. Estou começando a trabalhar na trilogia também. Sinto que não é o momento de entrar de novo no folclore. Posso dizer que a terceira parte tem muito mais a ver com o Brasil deslocado, visto por outros olhos. Quero discutir o elemento de brasilidade em outras culturas. Como a nossa cultura sobrevive, interage ou se manifesta em outros povos, situações geográficas, políticas, culturais e sociais. Não posso falar muito ainda, mas deve estrear entre 2009 e 2010.

Deborah Rocha é jornalista e dançarina de Dança Clássica Odissi.


FONTE:http://idanca.net/lang/pt-br/2009/01/08/estrangeiro-do-piaui/9642/

sábado, 3 de outubro de 2009

Interseções entre gestos e olhares























Ivani Santana tem 42 anos. Nasceu em São Paulo e mora há seis em Salvador.

Armando Menicacci tem 44. Nasceu na Itália e mora desde 1994 em Paris.

Ivani Santana começou dançando balé, aos oito anos, “como toda menina”.

Armando Menicacci calçou as sapatilhas pela primeira vez com a mesma idade, como quase nenhum menino.

Ivani Santana sempre almejou o além-dança. Nos palcos, trabalha há um bom tempo em busca de novas maneiras de fazer arte. Seu corpo vive à caça de outras estratégias poéticas. Hoje transita entre criação, pesquisa e ensino.

Armando Menicacci nunca quis ser bailarino. Deixou a dança na adolescência e partiu para a música. Aprendeu piano, mas foi estudar musicologia. Voltou a encontrar a dança aos 29 anos, numa perspectiva mais teórica. Hoje transita entre criação, pesquisa e ensino.

Ivani e Armando são amigos e desenvolvem em paralelo trabalhos com interesse interdisciplinar entre dança e tecnologia. Muito mais do que carreiras parecidas, compartilham uma forma particular de encarar o mundo – incluindo o fazer-arte. Se há algum rótulo para eles, é a noção de contemporaneidade levada a cabo. Não se contentam com a “verdade”; buscam o avesso. Não separam criação de experiência; corpo de mente; arte de técnica. Rejeitam o esquema de dualidades cartesiano. “Tecnologia = computador” é uma equação datada. Cultura digital vem muito antes da internet. Acreditam no potencial das máquinas, desde que não sejam meros “enfeites” utilitários – ou cenografias gratuitas. Para ambos, explorar o potencial de aparatos tecnológicos de ponta se figura como mais uma das maneiras de que o ser humano dispõe para trabalhar com novas possibilidades de recriar e conceber o real.

De uma forma geral, e por vias distintas, tanto um quanto o outro defende a ideia de que a relação entre dança e tecnologia não quer dizer a soma de corpo e câmera, simplesmente. Significa promover um encontro dentro de um ambiente próprio, ou se preferirmos, totalmente novo de pensamento – não necessariamente tomado por computadores e webcams. Se apropriar desse terreno é o caminho que escolheram para redescobrir o corpo, romper os limites do gesto e criar novos atalhos no percurso poético.

Essas e outras questões se mostraram bem evidentes entre eles na primeira edição do Seminário Interseções – Corpo e Olhar, realizado no Recife, entre os dias 24 e 26 de setembro (leia mais aqui). Menicacci abriu o evento com a palestra O olhar no calcanhar: sobre a especificidade do olhar coreográfico da imagem. Ivani encerrou o projeto, com as falas Dança imagem: provocações estéticas das apropriações no corpo e na tela, e Mapa D2. Entre ambos, uma programação extensa de seminários, debates, palestras e projeções de vídeo movimentou a iniciativa, cujo propósito foi promover uma discussão sobre a dança para além de suas especificidades. Dentro do amplo leque sugerido de interseção entre corpo e olhar, que pode ser entendido como dança e cinema, ou dança e imagem (ou muito mais), cerca de 40 pesquisadores e criadores apresentaram seus estudos e perspectivas teóricas.

Interessados nessas relações, pode-se dizer que Menicacci e Ivani também foram um ponto de diálogo na diversidade de entrecortes sugerida pelo evento – uma realização, com proposta bianual, do Acervo Recordança/Asssociação Reviva, da Fundação Joaquim Nabuco e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A partir deles, e da proposta do seminário em aproximar de alguma forma os seus discursos, foi possível mergulhar mais fundo nesse universo onde o corpo não é apenas uma dimensão orgânica.

Confira a seguir uma síntese de depoimentos e reflexões gentilmente concedidos por cada um deles em suas palestras e entrevistas ao idança.

“Estamos reinventando e redescobrindo o corpo”

Ivani Santana / Foto: Duda Freyre

Ivani Santana / Foto: Duda Freyre

Quando tinha 20 e poucos anos, e quase nada sabia sobre computadores, cibernética ou motion capture (captação do movimento), a paulista Ivani Santana resolveu colocar em cena um retroprojetor de sala de aula para interagir com bailarinas. Uma delas se incumbia de levar o aparato na mão e, na medida em que riscava sobre a transparência, imagens-gestos se projetavam sobre as demais intérpretes, que reagiam a cada impulso. Hoje, passadas mais de duas décadas, Ivani e o grupo de pesquisa do qual faz parte (Grupo de Trabalho em Mídias Digitais e Arte) se preparam para colocar em rede um ousado projeto de dança telemática, que vai acontecer em três cidades simultaneamente, com transmissão e conexão via internet.

Apesar de muito mais complexo e experimental que sua empreitada de juventude, Ivani não vê diferença entre este novo trabalho, intitulado e-pormundos afetos, e as investidas do início de carreira. Para ela, ambas as obras carregam em si o tripé que está no cerne de suas invenções: interação, imersão e tempo real. “Intuitivamente sempre tive essa coisa de trabalhar com conhecimentos novos, fossem quais fossem; de trabalhar com a dança sempre num sentido de estar repetindo o que está acontecendo na realidade vigente, daquele momento. Então, em cada época eu criei com as realidades que estavam à minha porta”, conta a artista, também pesquisadora e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Na visão de Ivani, tecnologia é algo inerente ao fazer artístico; ambos são inseparáveis, tal qual coração e organismo. Mestre e doutora pelo Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/São Paulo, ela enxerga essa relação como algo condicional na arte, e uma questão de mediação, não de “cola”. “Às vezes, as pessoas colocam dança e tecnologia como se fossem duas coisas que se juntam, como se fosse A + B e você pudesse falar: ‘Até aqui é A e até aqui é B’. E não existe essa possibilidade, mesmo na videodança”, afirma. “Onde está o elemento videográfico separado do elemento dança? Você não tem como falar isso. Aquele corpo está gravado daquele jeito, dançando naquele ângulo e daquela maneira a partir do momento em que você juntou as duas linguagens. O bailarino não estaria agindo de uma determinada forma e a câmera também não, mesmo se ela estiver num plano fixo. As duas coisas estão unificadas, não é uma dança utilitária, que eu coloco e tiro”, pontua.

Para ela, o grande interesse do artista deve estar na ideia, mas esta não se realiza se não dispuser de meios para tal. E nesse sentido, usar pincel é igual lançar mão da internet, ou o mesmo de um sensor acoplado ao corpo. O fascínio de Ivani por novas tecnologias se dá justamente nesse sentido. Se valer do uso da imagem na dança ou colocar o corpo em rede são exercícios que caminham na direção de novas possibilidades de arte e, portanto, de percepção de mundo. “A grande questão é que estamos reinventando e redescobrindo novas formas de o corpo se organizar”, defende.

Na concepção de Ivani Santana, utilizar a web como mídia é aproveitar um potencial, se apropriar de um pensamento particular que, para ela, tem muito a oferecer ao campo da arte. “Só fico às vezes com dó das pessoas que tentam ver na internet uma maneira de recriar um mundo como esse daqui, como no palco italiano. E alguns projetos artísticos ficam tentando se esforçar para que esse ambiente seja igualzinho ao de lá. Mas jamais vai ser”.

“Vejo nos bailarinos uma nova consciência do corpo graças a esses novos recursos”

Armando Menicacci podia ter nascido no Brasil. Assim não passaria pelo constrangimento de querer usar vários “chapéus”, como diz. Durante muito tempo, ele se viu em crise. Na Europa, onde nasceu e vive, as pessoas têm dificuldade para entender que alguém possa querer ser, ao mesmo tempo, pesquisador, professor e artista. Que mal há nisso? Entre os brasileiros, é algo absolutamente normal, até porque é raro ver alguém conseguir sobreviver atuando exclusivamente em uma dessas funções. Mas no “Velho Mundo” é diferente. Não existe muito essa história de prática e teoria serem faces da mesma moeda. São separadas mesmo, e por via institucional declarada.

Menicacci, contudo, nunca se conformou muito com esse tipo de organização social. E hoje enxerga como foco de vida aquilo que muitos ao seu redor percebem como paradoxo. “Aos poucos me dei conta que essa não é uma ambigüidade, não é um conflito, é um projeto. Um projeto de fazer uma outra circulação entre campos que normalmente não são reconhecidos como juntos. Quer dizer, ou você é uma coisa, ou é outra coisa. Mas é o outro que não quer ver a tua complexidade, o outro quer simplificar você. Você tem que ter um chapéu só”, afirma.

Armando Menicacci / Foto: Duda Freyre

Armando Menicacci / Foto: Duda Freyre

Hoje, este que já assume sem culpas sua identidade múltipla roda o mundo dando palestras, ao mesmo tempo em que mantém na França as atividades do laboratório Médiadanse, voltado a trabalhos de pesquisa, criação e pedagogia em dança e tecnologia. O espaço é ligado à Universidade de Paris 8, onde concluiu seu doutorado. Além de publicar livros e artigos nessa seara intermediada por diferentes campos de conhecimento, desenvolve ainda projetos artísticos no Digitalflesh, “um laboratório de pesquisas plásticas, musicais, cênicas e tecnológicas em torno do espetáculo vivo”, que ajudou a fundar com Christian Delecluse. Divide o tempo colaborando com coreógrafos como Alain Buffard, Rachid Ouramdame, Vincent Dupont e Helder Vasconcelos, e cuidando de suas próprias criações, que define como “instalações interativas”. São exemplos dessas concepções artísticas o Dans le noir e a criação coreográfica improvisada Under-score (foto), que já circularam por diferentes cidades e países, incluindo o Brasil.

Com essa vasta experiência, para ele é inconcebível que alguém ainda questione: “Como é possível unir dança e tecnologia, corpo e máquina?”. Menicacci sempre rebate: “Como não é possível? Chega dessa pergunta. Ela esconde um pensamento que tem medo da substituição do corpo pela máquina. E esse medo é muito velho. Essa substituição não aconteceu”. Segundo ele, essa resistência, e até de uma certa ignorância sobretudo entre os profissionais da dança, ganha reforço ainda porque alguns pensadores “ciberpessimistas”, como Jean Bradrillard e outros, afirmaram que a tecnologia nos afasta do corpo.

“Acontece o contrário. Na minha prática de análise dos movimentos, através dos recursos informáticos, do motion caption e da interação com o vídeo em tempo real, vejo nos bailarinos uma nova consciência do corpo graças a esses novos recursos, e não apesar deles; graças a esses novos ambientes da ação e do pensamento”, defende Menicacci, que se vê como “cibercrítico” – nem “ciberentusiasta” cego, nem pessimista incondicional.

O professor-criador-pesquisador entende e respeita que os bailarinos ou coreógrafos possam não gostar das novas tecnologias, e até admite que a dança nem sequer precise delas. Mas se incomoda com a reação sem argumento, em defesa da “pureza” do corpo sem nenhum debate embasado. “Arte e técnica foram sempre ligadas. A técnica sempre chegou para exprimir alguma coisa. E sempre os artistas usaram os últimos recursos, as mais novas tecnologias de sua época. Chegou o gás no teatro e a luz mudou, porque até o começo do século 19 havia a mesma iluminação na sala e no palco, e você não podia mexer com a luz, porque era só vela. A própria duração dos atos, das peças de Molière, por exemplo, era ligada ao tamanho das velas, e ele tinha que trocá-las… Então, técnica, arte, estilo, ritmo da montagem e da escrita estão ligadas”, analisa.

Concebendo a informática não como uma ferramenta, mas como uma tecnologia que muda a nossa forma de atuar no mundo, e de percebê-lo, ele diz que os bailarinos podem demorar anos, assim como fizeram com a sapatilha de ponta, para terem domínio desse universo. É normal. E afirma que espetáculos “ruins” não são um problema da tecnologia, mas do artista. “O importante é fazer poesia. Com qualquer coisa. Qualquer que seja o ambiente de seu pensamento”, reforça. “Tem danças que se organizam ao redor de um desejo de virtuosismo vazio, só pela performance, só pela diversão. E eu penso que diversão é o contrário de arte. Divertire em latim significa desviar. Desviar de quê? Da política, de uma ação pertinente do mundo que está caindo ao redor da gente. A diversão leva você para casa idêntico, igual. A arte muda você, tem que mudar você de algum jeito. Tem que construir. Uma obra de arte é um projeto de um outro mundo possível. Não é um objeto, uma coisa. É uma visão”.


Autora do Texto:Olívia Mindêlo é graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), onde estuda atualmente como mestranda do Programa de Pós-Gradução em Sociologia (PPGS). Atuou como repórter do Caderno C – Jornal do Commercio (JC), para o qual escreveu matérias de artes e cultura entre 2004 e 2009. No início deste ano, foi contemplada com o Prêmio Mário Pedrosa – Museus, Memória e Mídia, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pela série de reportagem Museu de Todos. Colabora periodicamente com a Revista Continente e outros veículos.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Corpo e Dança na Educação Infantil















Corpo e Dança na Educação Infantil

* Isabel Marques

Quero neste texto discutir com vocês e levantar questões sobre o papel da dança na Educação Infantil e como ela pode favorecer a construção de um corpo lúdico, crítico, voltado para a cidadania contemporânea.

Antes de passarmos à dança propriamente dita, quero primeiro deslocar nossos olhares para os principais atores da Educação Infantil: os alunos e os professores e suas relações com a dança.

Como professores, aprendemos que, para trabalhar com a dança na escola, é interessante conhecermos os alunos, seus corpos, suas danças. Sabemos que, partindo e trabalhando a realidade corporal dos alunos podemos também trabalhar com o universo sócio-cultural dos mesmos e, assim, estabelecer relações críticas com a sociedade em que vivemos.

Acima de tudo, para que nossa proposta pedagógica na área de dança seja consistente e transformadora, quero sugerir que precisamos conhecer também os conceitos, os sonhos, o imaginário das crianças a respeito da arte da dança. O que é dança para elas? Com que danças se identificam?

Que mundo imaginário a dança traz para elas? Por exemplo: os alunos sabem/gostam das danças da mídia? Ou preferem as danças brasileiras que aprenderam com os adultos em festas populares? Os alunos acham que dançar é fazer balé? Sonham em se tornar uma Ana Botafogo, ou seja, uma bailarina famosa? Que visão os meninos têm da dança? Trazem de casa preconceitos e/ou frases prontas do tipo “dança é coisa de mulher”? E assim por diante.

Raramente, no entanto, paramos para olhar para nossos próprios corpos de professores, para as danças que dançamos, para os conceitos, sonhos e desejos que temos em relação à dança. Quantas professoras, quando meninas, sonharam em fazer dança e foram privadas desta possibilidade por razões econômicas, corporais ou morais? Quantas de nós adoraria sair para dançar toda semana, mas não sai?



Reclamamos, muitas vezes, de que as crianças só gostam das danças da TV, de que estão “bitoladas” pela indústria cultural, de que não assistem outro tipo de dança. Mas, e nós, professores: que danças dançamos, assistimos, gostamos? Será que somente as crianças sucumbem ao poder universal e unilateral da mídia ou terminamos todos os domingos em frente à TV assistindo passivamente às bailarinas do Faustão? Fora da sala de aula, de nosso papel educador explícito, que relações temos com a arte da dança, com a produção cultural de nossa cidade e país? O que é dança para nós? Dança é mesmo “coisa de mulherzinha”?

Freqüentemente nos esquecemos de que nossos conceitos, práticas, escolhas e valores corporais e artísticos têm influência direta nas relações que estabelecemos com os alunos em sala de aula. Acima de tudo, o diálogo não-verbal que se estabelece diariamente entre professores e alunos é fruto destes conceitos, práticas e valores sobre o corpo e sobre o corpo que dança. Quero começar pela definição de dança na escola.

Para a maioria das crianças, e também para muitos professores, dança é sinônimo de “coreografia”, ou seja, de uma seqüência de movimentos interligados pela música. Se olharmos ao redor, é assim mesmo que a dança se apresenta para nós - das danças projetadas na TV às danças populares, passando pelos espetáculos de balé e pelos passos da dança de salão. Não podemos esquecer que hoje, até o carnaval, outrora sinônimo de “expressão individual”, está coreografado: as comissões de frente das escolas de samba e alguns trios elétricos, por exemplo, já estipulam passos, trajetórias, movimentos antes mesmo da festa começar.

O problema não está tanto neste conceito de dança, pois, afinal, a dança como arte é sim também um produto acabado que pode ser compartilhado com o público. Em situação pedagógica, no entanto, este conceito de dança é um tanto limitado e limitante pois, quando levamos estas danças “prontas” para a escola, resta às crianças simplesmente executarem a dança do adulto.

Sem dúvida nenhuma, uma dança pronta e bem acabadinha, todo mundo fazendo certinho e ao mesmo tempo, pode ser “bonito de ver”, mas estes são novamente os olhos do adulto sobre a criança. Para as crianças, as danças que chegam a seus corpos prontas e pré-determinadas (coreografias da TV, das danças populares, das professoras) não deixam espaço para que criem, brinquem, joguem com o corpo.



Não custa nada refletirmos novamente sobre o papel da escola na educação corporal e no aprendizado da arte. Que valores, conceitos, atitudes estamos trabalhando com as crianças se as faço repetir tudo que mando? Ou seja, para além da beleza estética “para mãe e diretora verem”, qual o papel da dança na escola em relação à formação do indivíduo, da construção da cidadania e da arte?

A dança, como área de conhecimento, permite uma leitura e uma releitura diferenciada de nós mesmos, dos outros e do mundo. Por meio do corpo que dança, estabelecemos relações com os sons, as imagens, as palavras e as narrativas que nos circundam e podemos dialogar com elas. Portanto, a dança cumpre um importante papel na educação do indivíduo/cidadão crítico e transformador.

Nos últimos anos tenho trabalhado com uma abordagem para o ensino da dança que nomeei “a dança no contexto” (Marques, 2001). Esta abordagem tem como princípio básico a criação de redes de relações entre a dança, o indivíduo e a sociedade que nos cerca. Inter-relacionados, estes três aspectos do ensino-aprendizado da dança nos permitem ampliar e problematizar não somente os conceitos e as visões de dança estabelecidas, mas, sobretudo, repensar nossas práticas educacionais. Comecemos pelo vértice do indivíduo.

Conhecemos de longa data a importância do corpo na constituição do sujeito. A percepção cinestésica do mundo (via corpo em movimento) propiciada pela dança nos possibilita abrir caminhos de crescimento e comunicação que não necessitam, necessariamente, da linguagem oral. As crianças pequenas que conhecem, saboreiam e aprendem as possibilidades do corpo em movimento poderão sem dúvida estabelecer uma forma pessoal e diferenciada de estar no mundo. As sensações, o prazer e o desprazer, os gostos e desgostos também estão no corpo: (re)conhecê-los, saber fazer escolhas, comunicar-se com os outros faz parte da educação do corpo, pois o corpo é fonte de auto-conhecimento.

Seria muito simplório, no entanto, pensarmos o papel da dança na Educação Infantil hoje somente sob o prisma do indivíduo. Sabemos que o indivíduo se constitui como sujeito a partir das relações sociais que estabelece com o mundo, ou seja, o plano cultural, político e social estabelecem relações diretas com o ser, construindo seu corpo, seus hábitos, atitudes.



Nossas histórias estão marcadas no corpo, sejamos crianças ou adultos. Ou seja, nossas experiências ao longo da vida vão construindo o corpo e a forma de estarmos no mundo (Johnson, 1991). É por isso que dizemos que o corpo, biológico, é socialmente construído. Mas, como se dá a construção do corpo?

A forma como fomos embalados na primeira infância, o número de irmãos com quem tivemos de “compartilhar” nossos pais, a própria presença ou ausência dos pais; os amigos que tivemos, os parentes, a forma como nos relacionamos com desconhecidos nos ensinam atitudes corporais. Ou seja, as relações que estabelecemos com as pessoas são carregadas de valores, princípios, atitudes e afetos que incorporamos ao longo da vida e que constituem a forma como somos e estamos no mundo.

Do mesmo modo, as atividades corporais que experimentamos (brincadeiras, jogos, fazer arte, afazeres domésticos) vão construindo nosso corpo e fazendo com que nos relacionemos com a vida de formas diferentes. Pensemos, por exemplo, em crianças que desde tenra idade devem ajudar a mãe nos afazeres domésticos (atividade corporal regular, com regras, classificação etc); ou, ao contrário, aquelas que nunca se quer arrumaram os brinquedos. As crianças que têm oportunidade de expandirem seus corpos, correrem, pularem são bem diferentes daquelas que só ficam sentadinhas fazendo lição na mesinha. As primeiras, em geral, são crianças que percebem seu entorno de forma mais ampla, mais profunda e mais apurada e, portanto, estabelecem relações com os outros de forma mais significativa.

Não podemos nos esquecer, claro, dos espaços arquitetônicos que “ensinam” nos corpos, ou seja, nos ensinam a atuar no mundo. O tipo de casa em que vivemos (grande, pequena, sobrado, apartamento, condomínio etc), o prédio da escola (tamanho das salas, acesso aos brinquedos, parque, escadas etc), a possibilidade ou não de estar em espaços abertos fazem com que nossos corpos sejam construídos de formas bem distintas.

Em suma, o corpo, uma das fontes de comunicação com as pessoas e com o mundo não é somente nosso habitat, um instrumento para nos ajudar a dançar e a viver. Em outras palavras, nós não “temos” um corpo, nós “somos” o nosso corpo, corpo este construído a partir das relações que estabeleço comigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente. Portanto, a construção da cidadania passa, necessariamente, pela percepção e construção do corpo.

A dança, arte eminentemente corporal, é mais uma forma de construirmos o corpo e, portanto, de construirmos a cidadania que queremos. A partir das danças que dançamos introjetamos valores, atitudes e posturas diante dos outros e da vida. Em outras palavras, aquilo que aprendemos por meio das danças que praticamos é mais uma forma de estarmos no mundo e de construirmos a sociedade em que vivemos.

Aqui voltamos ao início deste texto: que indivíduos e que cidadãos estamos construindo se, na escola, fazemos com que as crianças somente repitam passos e danças criadas por adultos? Muito provavelmente corpos passivos, sem atitude, sem iniciativa, sem crítica, ou aquilo que Michel Foucault (1979) chamou de “corpos dóceis”. Opostamente a isso, se nos levarmos pelo impulso do laissez-faire, do deixar fazer livremente o que vier ao corpo e à cabeça das crianças, estamos trabalhando valores, atitudes e princípios também opostos: a criança egoísta, sem limites e/ou percepção do outro e do mundo.

Penso que seria interessante refletirmos a respeito da dança na escola sob outra perspectiva: sugerirmos danças que permitam às crianças brincarem, explorarem, improvisarem, enfim, criarem suas formas de ser e de estar no mundo a partir da orientação e do trabalho dialógico do professor.

Se estivermos de acordo que mandar executar movimentos e seqüências adultas prontas compromete vários aspectos da educação cidadã, vimos que o oposto disso, ou seja, colocar uma música e sugerir que as crianças “dancem livremente”, é também uma ilusão de educação. A idéia de que toda criança dança naturalmente, é espontânea e não tem condicionamentos corporais não passa de um romantismo ingênuo sobre o corpo em sociedade (Marques, 2003).

Quem já tentou fazer esta atividade e teve como resposta as danças codificadas da mídia ou movimentos adultos nos corpos das crianças, se deu conta de que as crianças não são “purinhas”. Ao contrário, elas estão contaminadas de sociedade, de cultura, de relações político-sociais. Os corpos das crianças são corpos sociais, únicos, claro, mas sociais: são como esponjas absorvendo seu meio ambiente, as relações, a cultura em torno.

Por outro lado, podemos pensar que as danças das crianças são um amálgama da classe, do gênero, da etnia e da religião a que pertencem. Ao professor cabe gerar, orientar e propor bases para que os alunos possam descobrir os elementos deste amálgama, redescobri-los de forma consciente e gerar suas próprias sínteses corporais. Ou seja, o que as crianças já sabem, vivem, saboreiam em seus corpos? O que podem inventar e reinventar a partir disso?

Há várias formas de sugerir às crianças que brinquem com seus corpos e inventem suas danças a partir de suas histórias corporais. A primeira delas é trabalhar com os próprios elementos da linguagem da dança: o espaço, o corpo, os ritmos, as ações corporais, os relacionamentos. Como seria uma dança somente no chão? Que movimentos o cotovelo pode fazer? Que formas os corpos ocupam no espaço? Como é dançar uma dança lenta com uma música rápida? E assim por diante.

Outra proposta geradora de dança é sugerir que os alunos observem movimentos ao redor: carros, liquidificador, esguicho, pessoas - que movimentos eles fazem? Por quê? Quando? Onde? Como refazê-los no corpo? Estas observações podem se estender para observação da própria dança, ou seja, da dança como arte do movimento a partir de vídeos, idas ao teatro, figuras.

O meio ambiente também é gerador de dança, pois oferece diferentes espaços para que os corpos possam se movimentar, expandirem-se, recolherem-se, locomoverem-se. Do mesmo modo, as relações com as pessoas, através do toque ou do olhar podem gerar danças únicas, próprias de cada um, de suas histórias passadas, presentes e futuras.

Dentro de uma concepção problematizadora da dança na Educação Infantil, hoje seria importante pensarmos o corpo que dança sob uma perspectiva lúdica, flexível, perceptiva e relacional. As danças que sugerimos em sala de aula devem permitir escolhas, olhares diferentes para os corpos, para os outros para o mundo. Desta forma, não estaremos educando corpos e indivíduos dóceis, mas sim corpos e indivíduos críticos, conscientes e transformadores.



Referências bibliográficas



Foucault, M. (1979). Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes.

Johnson, Don (1994). Corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Marques, I. (2001). Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez.
Marques, I. (2003). Dançando na escola. São Paulo: Cortez.

*Isabel Marques é diretora do Instituto Caleidos e do Caleidos Cia. de Dança, em São Paulo, capital.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dança como produção de conhecimento



As propriedades formais e relacionais da dança conquistam existência pela conjunção e articulação de questões provenientes de vários saberes. Pensar suas produções artísticas como uma área de convergência entre questões poéticas, históricas, políticas, biológicas, cognitivas e comunicacionais, torna-se, portanto, premissa para o estabelecimento da reflexão aqui pretendida. O desafio de definir os domínios da dança, sem restringir sua complexidade em um único saber, apresenta, no mínimo, dois problemas estruturais. O primeiro deles diz respeito ao entendimento usual acerca das delimitações epistemológicas, ou seja, a produção do conhecimento pela definição de protocolos de verificação que permitam a categorização de dados e fatos estáveis, visando uma previsão controlável de um objeto qualquer. Mas como predizer os caminhos e as relações futuras de um objeto cuja especificidade abriga, predominantemente, o traço da mutabilidade? O segundo se relaciona à tendência de se confinar o conhecimento já produzido pela área em disciplinas, encerradas num domínio exclusivo regido por regras destinadas a impedir sua própria transgressão. Então, como acomodar o propósito primeiro de toda e qualquer manifestação artística de criar outras realidades possíveis? Ou, como impedir a arte de transformar ativamente o real, na medida em que propõe outros modos de existência que ainda não estão operando no mundo? Frente a estes problemas, uma outra questão se impõe: Como delimitar, de modo absoluto, as fronteiras de uma área de conhecimento que carrega a indisciplinaridade em sua constituição intersistêmica?

Embora pensar a arte e, conseqüentemente, a dança como área de produção de conhecimento seja uma preocupação surgida na passagem do séc. XVII para o XVIII, quando, juntamente com a criação das Academias Reais de Arte, todo um léxico foi desenvolvido, atribuindo à aristocracia a competência de reconhecer, e analisar, esta forma “elevada” de conhecimento, no Brasil, ainda nos debatemos com tal assunto.

Contudo, a descrição desta linguagem pede pela utilização não de um, mas de vários instrumentos teóricos, necessários para a confecção de uma análise condizente com sua complexidade, ou seja, instrumentos capazes de produzir uma formulação mais abrangente acerca das relações estabelecidas pelos processos de produção de sentido nela midiatizados.

Estudos sobre a evolução e a configuração da cognição humana produzidos por pesquisadores das Ciências Cognitivas nos ensinam que os processos de construção e aquisição do conhecimento ocorrem pela negociação entre uma multiplicidade de informações que, em grande parte, são transmitidas pelos neurônios e hormônios, sendo que, estes agentes, na mesma proporção em que realizam tarefas específicas, também se disponibilizam para outras conexões possíveis. Talvez tenhamos algo a aprender com o modo como se dá o processamento das informações no e pelo corpo. O trânsito colaborativo entre elas sugere a possibilidade da construção de outras concepções epistemológicas, onde demarcações territoriais não teriam lugar, não cabendo ao conhecimento a apresentação de passaportes.

O filósofo Karl Popper, em O cérebro e o pensamento (1992), propunha que todo conhecimento se origina de um conhecimento prévio. Mas, sem dúvida, utilizar o conhecimento existente e abandonar a clássica idéia de prova e verdade requer o questionamento e a revisão de antigos métodos. Entender a dança não somente como produto artístico, mas também como área de produção de conhecimento, implica no reconhecimento de que ela é capaz de descrever e analisar seus próprios objetos. Isto, obviamente, envolve a solução dos problemas levantados anteriormente, mas cabe lembrar que as soluções possíveis sempre serão transitórias, pois o conhecimento produzido por qualquer área do conhecimento não está livre da ação do tempo.

A Idéia de Movimento

Uma abordagem evolutiva sobre a idéia de movimento em dança, obviamente, está condicionada às ocorrências que conseguiram conquistar estabilidade ao longo de sua história, permanência devida não só à eficiência replicadora das discussões e dos questionamentos produzidos acerca de suas propriedades formais e relacionais, mas também pela co-determinância entre seus produtos e o ambiente sócio-cultural no qual emergiram.

A investigação de uma linhagem possível das idéias que conquistaram permanência pode fornecer índices que favoreçam o entendimento da amplitude das interações presentes nesta linguagem. Sob esta perspectiva, a arte de dançar pode ser considerada tão antiga quanto os processos de especialização do movimento, implementados no corpo que dança; e este tem sido, até então, seu paradigma axial, ou seja, dança é movimento.

A síntese destas tendências e as conseqüentes formulações da idéia de movimento podem ser detectadas pelo exame dos diferentes períodos históricos. O questionamento do ideário Barroco inaugurou o entendimento de que o movimento é capaz de carregar e comunicar seus significados, não necessitando de adornos ou adereços para se configurar como linguagem. A proposição de que forma e sentido co-habitam o movimento (na terminologia do séc XVIII, técnica e expressividade) se estabiliza. Já no Romantismo, mais especificamente entre 1830 e 1850, a perseguição de uma maior precisão formal e do conhecimento necessário para promovê-la geram massivos investimentos em questões técnicas, produzindo o Balé de Elevação. Contudo, há um tributo a ser creditado a tal empreendimento. Neste período um outro entendimento conquista estabilidade, ou seja, o corpo que dança tem que ser capaz de manipular o movimento.

Esta busca pela leveza do movimento, gerada para atender a demanda da transcendência, acaba negligenciando a inerente questão que permeia toda a história da dança, ou seja, a inseparável conexão entre forma e sentido, questão enfaticamente retomada pelo Balé Moderno, que problematizou os modelos coreográficos consolidados ao se contrapor ao excesso de formalismo que o Balé Romântico havia atingido. Neste período, observa-se a proposição de que a ação de dançar não se restringe à mera junção de passos, e que o movimento é um meio de expressão de significados, condicionados a princípios lógicos de organização. Esta reação contrária aos exageros formais também marca o surgimento da Dança Moderna, cuja proposta inicial de renovação encontrava-se balizada pela busca de novos vocabulários de movimento.

Até aqui, as propostas estéticas que realocam a idéia de movimento têm como premissa o não-entretenimento e o não-formalismo, contudo, em meados do séc XX, uma outra discussão promoverá novamente a reconfiguração das concepções vigentes, nela a necessidade de especialização do corpo que dança torna-se alvo de indagação. Abalaram-se os pressupostos de que o treinamento técnico destinado à aquisição de um modelo padronizado de corpo era indispensável para se fazer dança.

Este século, marcado por rupturas, tem produzido grandes mudanças nas expectativas relativas à recepção da dança. O conceito de representação cênica é substituído pelo de apresentação, ou seja, apresentar uma reflexão competente sem a proposição de soluções definitivas. A concepção de espetáculo de dança como produto final é revista, adotando-se o entendimento de produto processual. Com isso, o modelo da repetição é substituído pela construção da ação a partir da singularidade da implementação, abrindo brechas de reflexão em coisas constituídas, não mais se tratando da simples reprodução de algo que está pronto. Na instância da criação, a improvisação é adotada como ferramenta e os conceitos de incompletude, simultaneidade, fragmentação, acaso, não-linearidade, não-hierarquização, entre outros, passam a ser adotados pelas composições coreográficas.

Estes traços continuam permeando as produções atuais, onde a improvisação não é mais apenas uma ferramenta de criação, mas também um outro modo de se organizar a cena, uma vez que o material coreográfico previamente explorado se configura como procedimentos que terão suas propriedades, formais e relacionais, reconstruídas a cada apresentação.

Porém, algumas das produções contemporâneas mais recentes, através de suas formulações em curso, forçam uma outra mudança de percepção no sentido da atualização dos entendimentos de movimento em dança até então tidos como inquestionáveis.

A observação da tendência do “não-movimento” coloca a idéia de movimento em cheque, promovendo alterações radicais nos seus padrões de produção e de recepção, forçando a revisão de vários pressupostos já estabilizados. Cognitivamente, o não-movimento é uma impossibilidade para as espécies que possuem um sistema músculo-esquelético. O movimento está constantemente ocorrendo mesmo que não ganhe visibilidade, sempre há um fluxo inestancável de conexões e atualizações adaptativas se processando.

Há alguns anos, esta discussão pareceria infundada, uma vez que reinava absoluta a certeza de que o movimento era o meio de expressão fundamental da dança e, mais do que isso, sabia-se perfeitamente o que esperar dele. Mas a situação mudou vertiginosamente nas últimas décadas. Ao longo de sua história, o entendimento de movimento em dança sempre esteve mergulhado em constantes processos investigativos e, conseqüentemente, questões relativas ao corpo que dança se encontravam, e ainda se encontram, em processo de formulação.

Este fluxo de mutabilidade pede pela construção de outras formas de conhecimento, também mutáveis, e neste momento, fica em aberto a seguinte questão: Estaria o movimento deixando de ser a ação fundante de toda e qualquer composição coreográfica?

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Autora do texto:Rosa Hércoles
Professora do curso de Comunicação e Artes do Corpo, Puc-SP. Atua como eutonista e dramaturgista da dança. É Doutora em Comunicação e Semiótica pela Puc-SP

Fonte:http://idanca.net/lang/pt-br/2008/02/21/epistemologia-em-movimento/5229/

sábado, 1 de agosto de 2009

DANÇA-INTERVENÇÃO: proposições artístico-políticas para corpos adolescentes sujeitados. A Dança do Ventre na Situação de Sujeição






“Porquanto como conhecer as coisas senão sendo-as?”
Jorge de Lima[1]

A intenção de apresentar a dança do ventre como uma ação propostiva dos modos de organização de corpos adolescentes sujeitadas pelo abuso sexual, nasce da possibilidade de discutir a dança em uma moldura pouco habitual, em um arranjo que aproxime o corpo que dança de ações propositivas e contextualizadas, ou seja, em discussão corpo-ambiente-mundo. Trata-se de um exercício de expansão do modo de atuação, já que se trata não somente da dança enquanto intervenção do corpo, mas também um modo de atuar que estabelece outras percepções e relações dos corpos-sujeitos[2] e corpos-institucionais[3] envolvidos no enfrentamento da violência sexual.

Assim, pois, é relevante aqui tratar a dança do ventre como produtora de questões, sejam elas de natureza teórico-histórica, a exemplo de: qual o entendimento de corpo presente nos espaços institucionais que adotam procedimentos dessa ordem, no trabalho com adolescentes sujeitadas pelo abuso? ; ou como produtora de questões de natureza histórico-política: as ações adotadas pelos corpos-sujeitos pesquisados tenderiam a promover um modo de atuar distinto do desenvolvido pelos corpos-instituições, aos quais são vinculados? Ou seriam uma repetição da mesma rede histórica daquilo que se fazem parte? Questões que apontam para o grau de complexidade das relações envolvidas e solicitam um processo de indagação contínua.

A dança tem como local imediato de ocorrência o corpo, que opera em contínua troca de informações com o ambiente. Desconsidere-se, desde já, qualquer forma de entendê-la como uma ação descolada do seu lócus de atuação. Em vez disso, a dança é aqui entendida enquanto ação-intervenção que colabora para o entendimento do corpo-sujeito-ambiente como um sistema integrado, processual e co-existente. Uma vez que “não há dança a não ser no corpo que dança. Não há dança fora da semiose” (KATZ, 2005: 140).

A formulação que contribui para apresentar a dança do ventre como uma construção incessante no corpo, implica em reconhecê-la enquanto provisoriedade – soluções provisórias e possíveis ajustamentos do processo do fazer-se corpo. Ao mesmo tempo em que, a dança denota possibilidades de soluções às demandas a ela solicitadas. Ainda que sejam da natureza do corpo ou não. Note-se que esta proposição - a dança do ventre - apresenta-se enquanto articuladora de ações-atuações nas instâncias dos corpos-sujeitos e corpos-instituições.

O entendimento de corpo presente nos serviços institucionalizados às adolescentes sujeitadas ao abuso sexual na cidade de Salvador, a exemplo do CEDECA[4] e Projeto Viver[5], se configura a partir de uma lógica cartesiana que separa a mente do corpo. Baseia-se no sistema conceitual de uma Razão Universal, que prioriza os processos mentais nos serviços prestados e desprivilegia o corpo como local de cognição. Neste modo de operar, é comum associar o corpo apenas como local de introjeção do abuso e a mente como local de (re)elaboração do trauma sexual.

Esta postura colabora para a segregação do corpo colocando-o enquanto objeto a ser descrito nos protocolos de perícia médica. Uma forma de entender o corpo que se fixa na informação do abuso e o classifica pelos tipos de lesões e sinais corporais encontrados. Com efeito, às vezes, de atender a necessidade de se comprovar o ato delito, visto que a violência sexual é considerada um crime contra os costumes[6].

A busca do detalhamento de sinais corporais que materializam o abuso sexual engessa a compreensão do corpo. Fixa-o, classifica-o como categoria geral, perpetuando-o enquanto representação descolada do ambiente e do tempo. Cindido da sua própria história e do fluxo dos acontecimentos. Banido do estado de provisoriedade e dos aspectos circunstanciais que o constituem transformação. Torna-se descrição.

Em desacordo com essa maneira de entender e atuar no corpo, o trabalho desenvolvido com a dança do ventre propõe apresentar um entendimento de corpo, distinto do adotado pelos corpos-instituições. A começar pela ruptura com a episteme cartesiana e a tendência de categorizá-lo como um fenômeno genérico. Para tanto, assume a dança como um pensamento implementado, ou seja, uma experiência sensório-motora que opera no contínuo corpo-mente, sem a separação de movimento e pensamento. Onde cada ação motora da dança se configura como um pensamento. Pois como descreve Katz, “quando a dança acontece num corpo, o tipo de ação que a faz acontecer é da mesma natureza do tipo de ação que faz o pensamento aparecer” (2005, p.40).

“Quando o corpo pensa, isto é, quando o corpo organiza o seu movimento com um tipo de organização semelhante ao que promove o surgimento dos nossos pensamentos, então ele dança. Pensamento entendido como o jeito que o movimento encontrou para se apresentar” (KATZ, 2005. introd).

Entender a dança como pensamento do corpo favorece indicar àqueles corpos sujeitados o redirecionamento de posições e o exercício de questionamentos relacionados às ações de intervenção aos quais foram submetidos. Nessa hipótese, reside o modo empregado para designar pensamento: “uma maneira de organizar informações – uma ação, portanto, e não o que vem depois da ação” (KATZ, 2005, introd.).

A importância dessa proposta reside no sentido do pensamento como a síntese temporária das relações entre as informações que transitam no corpo que dança no apronte do acontecimento. A particularidade dos acionamentos e a transitoriedade das circuitações corporais provocam a exposição de soluções provisórias de ajustamentos no mundo. Troca-se o sentido do corpo como produto genérico e sujeito a descrição, pela ação de ajustar-se, transformar-se.

Corpo-dança-sujeição, uma co-existência possível

A percepção dos corpos na condição de corpos-sujeitos que co-existem no mundo vai ajudar nos processos de reconfiguração desses mesmos corpos. Em nenhum momento se pretende minimizar as questões do abuso, mas sim revertê-las em condições favoráveis aos corpos sujeitados. É nessa mesma ação que se dá a reorganização da ação enquanto abuso. No fazer e reconhecer desse trauma sexual[7] sem negá-lo, mas trazê-lo para a convivência, nas correlações funcionais e tratá-lo no mesmo espaço de ocorrência. Pois baseado nas concepções do indivíduo, se faz preciso:

“[...] manter o que se passou na dispersão que lhe é própria, é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios-ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” ( FOUCAULT, 2006, p. 21).

Com este propósito, as ações de dança do ventre desenvolvidas com corpos-sujeitos nos anos de 2004 e 2005, se prestaram como proposições subversivas na medida em que requisitaram o corpo enquanto local de implementação de um outro tipo de informação; considerando a dança e o abuso como constitutivos mútuos. A partir de uma dinâmica de relações onde fosse possível a simultaneidade de ocorrências, sejam elas enquanto uma coleção de passos sobrepostos, ou até mesmo idéias, pensamentos ou imagens; os movimentos de dança trabalharam para infringir o entendimento do corpo resumido apenas como local de introjeção do abuso.

Considerar a simultaneidade das ocorrências no e pelo corpo possibilita deslocar a fixidez da informação/sujeição e propor a lógica de organização do assujeitamento pela convivência. O corpo renegocia as ocorrências e se constitui a todo instante, de modo que, “não há um resultado único e nem último” (SETENTA, 2008, p.39). Uma condição que faz pensar o corpo em metamorfose e questionar os modos de tratar a violência nos serviços prestados pelos corpos-instituições. Ora, se o corpo “como processo, nunca está pronto” (GREINER, 2003, p.142), por que insiste-se no grifo[8] do corpo sujeitado? Validando-se a insistência, fixa-se a sujeição como se fosse possível ignorar a natureza simultânea/múltipla do corpo; desconsiderando-a significa dizer que o corpo somente pode ser tratado em sua complexidade constitutiva, a partir dos elementos que o consubstanciam, e mesmo assim sempre como resultado provisório.
Dançar com o assoalho pélvico – lócus do acidente- em continuidades e descontinuidades com outras informações, implica numa abertura de negociação dessa parte do corpo com demais partes – tomando-a como parte de direito. O corpo-sujeito aberto e propondo um exercício de reorganização do abuso, de certo modo, abre-se para convivências e negociações de distintas informações inclusive as de sujeição.


É interessante o exercício de correspondências. Na intervenção proposta com a dança do ventre, o assoalho pélvico é um o ponto de recordação do abuso sexual e também um ponto de ignição motora dos movimentos. Porém ao olharmos para o desenho do movimento proposto e a condução das relações que se seguem, o acionamento não se fixa apenas neste local. Não pára ai, se encaminha em fluxos. Existe um diálogo entre muitas partes do corpo, conferida pelo caráter articular e não linear adotado nos procedimentos da dança. Um traçado em um caminho sem fim, uma agulha de costura desenhando caminhos contínuos e descontínuos, com ocorrências que são insulares ao quadril e seu entorno e outras não. Logo, as movimentações propostas são resultantes de uma mobilidade de poder. Oferece uma outra dinâmica de atuação que não reforça a região pélvica como parte determinante dos movimentos e nem tão pouco, retira-a da cena como parte deslocada do corpo.

Convém, no entanto, explicar o entendimento de poder aqui implicado. Ele configura-se enquanto domínio compartilhado, vinculado às escolhas dos acionamentos da dança do ventre. Um poder que não ocupa um determinado lugar, que não se encerra em um ponto específico do corpo que dança. Se exerce na mobilidade dos acionamentos da dança, nas relações dos movimentos. Ora disparado pela região do quadril em movimentos sinuosos, ora pelos movimentos dos braços e das mãos. Compartilhamento da estrutura da dança em rede, em acionamentos contínuos. Desmonte do entendimento do quadril como o foco central da dança.

Para o filósofo francês Michel Foucault, “o poder não é algo que se detém, como uma propriedade, que se possuí ou não. Não existe de um lado os que têm poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados” (2006: p. XIV). O que significa dizer que o poder se efetua no caráter relacional e por conseqüência, ao entender o exercício da mobilidade de poder, as ações contra as sujeições podem ser feitas de vários lugares e relações.

Aqui temos um campo de informação da dança que não se encerra na descrição. Apresenta uma proposição, suscita analogias e questões. Por isso, seja interessante pensar e repensar na maneira como essa lógica de atuação motora pode ser trabalhada no campo da violência sexual - talvez maneiras de reformular e encaminhar questões referentes à sujeição? O corpo-sujeito por equivalência, tenderia transpor o exercício de diálogo dos pontos de acionamento da dança no modo de atuar no abuso, considerando multiplicidade de ocorrências, a mobilidade de poder e a transitoriedade dos acontecimentos como uma condição de estar no mundo. Uma adoção de uma ação, que refuta o determinismo embutido nas proposições institucionalizadas.

Algumas Considerações

Convidar o corpo que dança para a cena do abuso, configura-se como proposição subversiva da dança do ventre. Um modo de atuar que garante ao corpo-sujeito o seu direito ao corpo. Situação descrita por uma adolescente assistida pelo CEDECA: “a dança do ventre, me fez ver que eu tinha um corpo, como um direito” [9] . Uma prática que associa a ação motora que o corpo executa a um fazer que implica na adoção de uma jurisdição do corpo. A noção de corpo aqui proposta compreende que “cada corpo é um caso particular, no próprio sentido jurídico do termo. Assim, cada corpo corresponde uma espécie de jurisdição” (GREINER, 2005:27). Ao mesmo tempo em que afirma a singularidade de cada corpo-sujeito, ao adotar a jurisdição do corpo como um “dizer do direito”. Que se utiliza dos enunciados dos seus arranjos específicos como garantia de princípios.

Para tanto, é necessário deslocar as ações de dança do ventre da sua moldura habitual, enquanto entretenimento e dança étnica, e propor outros modos de atuar nesse fazer e agir no mundo. Provocar nos corpos-sujeitos o redirecionamento e deslocamento de posições e questionamentos relacionados às ações de intervenção aos quais foram submetidos. Sobretudo, ao se pensar que “as idéias se organizam no corpo, o corpo assim formado [...] sempre age no mundo a partir de uma determinada coleção de informação” (SETENTA, 2008:30). Levar em consideração a colocação do abuso em discurso, analisá-lo de forma crítica-reflexiva: como é tratado, quem fala e os pontos de vista de que se fala. Propõem perguntas e promovem outros modos de encaminhar e meios de intervir em corpos-sujeitos e corpos-instituições.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROS, Manoel. Compêndio para uso dos pássaros. 4°ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GREINER, Christine. (2005) O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
______. Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003.
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006.
KATZ, Helena. Um, Dois, Três. A Dança é o Pensamento do Corpo. Belo Horizonte:Helena Katz, 2005.
OLIVEIRA, Maria de Castro. A Dança e o Verbal nos Processos de Comunicação do Corpo. 2002. 95 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.

[1] BARROS, Manoel de. Compêndio para uso dos pássaros. 4°ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. Pg. 51.
[2] Corpos-sujeitos - termo utilizado para se referir as adolescentes vítimas de abuso sexual, alunas das oficinas de dança do ventre e selecionadas pelo CEDECA e Projeto Viver nos anos de 2004 e 2005. Adolescentes na faixa de 12 a 18 anos, oriundas na grande maioria de bairros periféricos da cidade de Salvador.
[3] Corpos-institucionais – termo utilizado para se referir as instituições que prestam serviços de atendimento às pessoas em situação de violência sexual, a exemplo do CEDECA e Projeto Viver.
[4] CEDECA – Centro da Defesa da criança e adolescente/ Bahia. Instituição não governamental que presta serviços às pessoas em situação de violência sexual.
[5] Projeto Viver – Órgão da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado da Bahia, situado no Departamento de Polícia Técnica do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, que presta serviços às pessoas em situação de violência sexual.
[6] Os crimes contra os costumes estão previstos no Título VI da parte especial do Código Penal Brasileiro. A exemplo do estupro e atentado ao pudor, classificados como hediondos pela lei 8.072-1990.
[7] Trauma Sexual-termo utilizado pelas instituições e profissionais que prestam serviços às pessoas vítimas de violência sexual, para remeter a situação do abuso.
[8] O entendimento proposto para o uso do termo grifo refere-se à tendência em fixar a sujeição como uma evidência que se destaca frente às outras ocorrências do corpo. Foca-se no assujeitamento como o “acontecimento” suspenso da sua provisoriedade.
[9] A. O. Adolescente assistida pelo CEDECA/BA e participante das oficinas de dança do ventre ( com 17 anos, em 2005).

Sobre a autora: Márcia Mignac
Licenciada em Dança, Mestre em Dança e Doutoranda do Programa de Comunicação em Semiótica da PUC-SP.

sábado, 25 de julho de 2009

CORPOS ENTRE MARGENS POR HELENA BASTOS












A idéia deste texto partiu de um tempo de convivência com o Núcleo de Criação do Dirceu, periferia de Teresina, Piauí, em fevereiro de 2008. O grupo Musicanoar foi convidado a se apresentar com o espetáculo de dança Vapor no projeto lançado pelo Núcleo de Criação do Dirceu denominado Mapas do Corpo (leia aqui notícia sobre a 3ª edição do evento).

Sabemos que qualquer construção bem realizada depende de parcerias e condições as quais propiciam possibilidades mais concretas de realizações com um devido sucesso. No caso do Musicanoar, eu - Helena Bastos - e Raul Rachou tínhamos a disponibilidade da diretora de Vapor que nos acompanhou: Vera Sala. Da parte do Núcleo de Criação do Dirceu contávamos com a coordenação de Marcelo Evelin (coreógrafo/criador/intérprete) neste projeto, a produção de Regina Velloso e Klayton Amorim e o diretor administrativo Francisco de Castro. Neste circuito houve também a mão do Itaú Cultural - Rumos Dança2006/2007, que administrou nosso cachê, nossas idas e vindas tendo sempre a presença da gestora de projetos de dança Sônia Sobral.

Quando mapeamos estas relações é por querer chamar atenção que qualquer pensamento, para existir, necessita de visibilidade que estará sempre vinculada a uma temporalidade no ambiente e co-dependente do modo como as relações se articulam num determinado espaço focado e disponível em direções que fomentem o fazer criativo. Em Teresina, era falar de dança, criação, dramaturgia, contemporaneidade em dança, enfim, pretendia-se deste encontro uma reflexão conjunta em que artistas, professores e iniciantes ligados à pesquisa de linguagem cênica movessem suas ações e conseguissem expandir modos de pensar organização no corpo que dança.

Arte no projeto Dirceu passa pelo entendimento de outras formas de conhecimento. Todo conhecimento é uma forma de educação vital. Vale ressaltar a pertinência deste encontro com o Musicanoar. Apesar de morarmos em cidades distantes entre si, como São Paulo e Teresina, parte do que alimentou nosso encontro foi a percepção de haver uma proximidade por questões conceituais inseridas nas nossas investigações contemporâneas.

Nestes 16 anos de trabalho, o Musicanoar ampliou o entendimento sobre composição e coreografia no ambiente contemporâneo. Hoje, o perfil deste artista na relação com uma obra coreográfica exige uma intervenção diferente tanto no momento da construção, produção e execução do espetáculo.

O Musicanoar apresenta um perfil que lida com uma conduta investigativa, em que determinados padrões de movimentos se formalizam, a partir do modo como construo o espaço deste ambiente num passo a passo. É um modo de construção que, para aquele que está envolvido no ambiente enquanto intérprete-criador, é muito difícil. Em conversas, durante ou depois de uma coreografia ser concluída, muitos destes intérpretes desabafavam comigo ou com outros que uma das maiores dificuldades era a da sensação de se mover num ambiente escuro e desconhecido - eles tinham dificuldades de nomear este “dançar”, perdiam referência sobre o chão desta dança. O encadeamento desta fala era recebido com estranhamentos e conseqüentemente geravam preocupações como aonde tudo isso iria levá-los?

Esta maneira de construção exige uma disponibilidade imensa. O chão inicial é a idéia da pesquisa coreográfica que surge com um padrão de movimento. A partir deste passo, inicia-se um processo em rede - a idéia se amplia, o padrão inicial de movimento vai se tornando mais preciso no espaço, desenhos espaciais em deslocamento vão surgindo nestas conversas e um ambiente musical vai-se configurando. A coreografia anda para frente, apesar de sensações que lidam com perdas, ganhos, avanços e retrocessos. Estes parceiros, intérpretes-criadores, marcaram o Musicanoar com atos de imensa generosidade no propósito de criar outros mundos, cheios de significados, num ambiente onde a princípio nada está configurado.

Desde 1993, Raul Rachou pôs os pés no Musicanoar e, aos poucos, suas longas pernas contaminaram o meu caminhar com o Musicanoar. Ele é o meu grande companheiro de cena. Sem premeditação, simplesmente uma construção mútua, contínua, de uma imensa caminhada. Apesar de Raul, na sua trajetória de vida, ter passado por várias aulas e cursos de dança, é a partir de 1990 que se lança com uma dedicação mais profunda e sistematizada na sua formação corporal.

Em 1999, decidi que o próximo trabalho seria com a participação de poucos intérpretes. Esta escolha surgiu a partir da minha necessidade em averiguar mais profundamente o corpo, o que acontece quando provocamos criação de outros padrões de movimentos e o que esta relação provoca no contexto do ambiente. Neste momento, poderia ter escolhido a direção de um solo coreográfico, porém, gosto de compartilhar a cena com alguém. Neste caso, perguntei ao Raul se ele concordava que a próxima aventura fosse somente entre eu e ele. Juntos, decidimos ir além, mais fundo na busca de outros entendimentos de corpo que lidam com a criação e investigação da cena contemporânea em dança.

A convivência com Raul foi ampliando o meu entendimento sobre o papel do intérprete-criador. Na realidade, ao montar os espetáculos, no início da minha convivência com o Programa de Comunicação e Semiótica, eu achava que uma mistura de referências poderia dar conta desta conduta contemporânea. Hoje é claríssimo que não basta misturar e ficarmos no nível de inúmeras colagens. A crítica de dança Laurence Louppe nos fala da idéia de hibridação: “Mistura evoca uma idéia de universalidade que está em harmonia com o tipo de abertura cultural oferecida por correntes mundiais de pensamento com suas idéias sobre alteridade, identidade de grupo e diálogo inter-grupal. Contrastando com isso, o híbrido. Esse híbrido não se situa em nenhum lugar, não é nada. Freqüentemente, ele é totalmente isolado e atípico, o resultado de uma combinação única e acidental. A hibridação funciona muito mais do lado da perda. A hibridação age mais na nucleação dos genes ao subvertê-los e deslocá-los”. (2000: L. Dança2)

Outro dia, conversando com Raul e a nossa consultora de improvisação, Cleide Martins, nos questionamos sobre o que é que há, nesta nossa parceria, que colabora nesta configuração de dois, enquanto ótimas condições de trabalho, voltada para uma produção de pensamento investigativo e da cena? Levantei a seguinte hipótese: a necessidade de ocupação. Dessa forma, o meu olhar lida com composição. Busco decifrar na relação do pensamento lançado possibilidades de diversas ocupações no ambiente que lidam com diferentes níveis de criação. Neste caso, falo de vetores, deslocamentos, aceleração, produção de outros padrões de movimentos e desenhos no espaço, por exemplo. É como se eu fosse criando toda uma geografia deste lugar com seus inúmeros relevos e apontando as necessidades destas diversas relações.

O Raul tem a mão de um cirurgião. No momento em que proponho uma investigação de padrão de movimento no corpo, o seu mergulho gera uma obsessão profunda de auto-investigação na relação com tudo que começa a povoar o nosso ambiente. Tal rigor contamina todo o fazer da cena. Ele libera interações neste ambiente em que todo um trabalho exploratório no próprio corpo ilumina as necessidades das minhas solicitações, liberando um aspecto poético e filosófico. Neste tempo de convivência com este meu parceiro, a sua dedicação ao trabalho de professor baseado na técnica do método de pilates aguçou nele um grande entendimento do corpo. Hoje, ele me ensina sutilezas deste nível de disponibilidade corporal, em um caminho povoado de diferenças. A cada vez que proponho uma fala, sua primeira ignição é a da necessidade de um grande mergulho na experimentação. A conversa entre palavras surge depois. Percebemos que, por mais estranha que seja a minha solicitação de coreógrafa, a formulação de qualquer dúvida se tornará mais precisa após diferentes experimentações e elaborações neste processo criativo que demanda tempo.

À medida que o Musicanoar avança nos seus projetos, ao longo destes anos, nos inserimos em diferentes movimentos representativos de profissionais de dança, que propiciaram diferentes estratégias de atuação conjunta na cidade de São Paulo. Se, enquanto artistas, não nos envolvemos e elaboramos outras estratégias coletivas de organização e condução que venham a atender nossas necessidades, quem irá criá-las? No nosso caso, um exemplo é lutar por subvenções públicas e leis que garantam a subsistência e manutenção de diferentes grupos em projetos de criação, circulação e produção.

Nestes 16 anos muitos movimentos de dança foram criados, desmontados, aglutinados de outros jeitos exigindo de seus participantes conversas e estratégias de permanência da realidade de dança contemporânea. Não cabe agora explicitá-los, porém, existe um aspecto comum entre todos - cada um destes grupos e artistas lidam com uma produção investigativa e de pesquisa de linguagem num fazer contemporâneo. Entendo que o Núcleo de Criação do Dirceu também está ligado a estas reflexões. Expandir modos de organização a fim de gerar compromisso dos governantes na elaboração de política pública de cultura de forma mais eficiente e condizente com nossas necessidades contemporâneas.

É importante esclarecer que o termo contemporâneo não está associado a uma técnica ou estilo de dança. O termo contemporâneo traduz uma ação investigativa na relação das nossas propostas coreográficas que passam por um pensamento e o modo singular como cada grupo ou coreógrafo constrói seus espetáculos. Os espetáculos gerados por estes diferentes criadores nunca são produtos prontos, quer dizer, as apresentações públicas são oportunidades deles testarem suas investigações. Uma vez que estes criadores buscam invenções com outros modos de construção, geralmente, seus espetáculos funcionam como protocolos de laboratórios, resultantes de pesquisas direcionadas para uma linguagem da cena.
Todo conhecimento é uma forma de educação vital. Vivemos porque conhecemos. Por esta razão, entendemos que a arte é um mecanismo co-evolutivo em que a estética faz parte de uma realidade concreta. A natureza também é estética. Estética é lidar com eficiência e, não à toa, as coisas precisam se adaptar para sobreviver. A pertinência da arte age na relação de uma necessidade de expandir uma realidade para permanecer (isto é, sobreviver), conhecer e construir, numa mesma escala temporal, outras possibilidades de se pensar sobre processos organizativos.

O Centro de Criação do Dirceu foi criado em agosto de 2005 pela prefeitura de Teresina, respondendo a insistentes reivindicações da Comunidade do Grande Dirceu, bairro mais populoso da cidade. Esta ação atende a uma urgência colocada por seus munícipes. Isso é uma iniciativa pública com possibilidades de sucesso pelo fato de ser compartilhada e apoiada por uma comunidade que deseja investigar a arte. Esta empreitada vem mobilizando e reconfigurando este ambiente público como um espaço de discussão, troca, trânsito, interação, pesquisa, aproximando artistas de diferentes pólos do Brasil e do exterior para fomentar o pensamento de um fazer estético numa direção contemporânea.

O Núcleo de Criação do Dirceu na estréia de Mapas do Corpo foi competente na articulação entre regiões distantes, que comprovaram que a distância não é um obstáculo para se entrar em contato. Qualquer expansão de pensar outros modos de organização depende da imaginação, inventividade e coragem de se quebrar rotinas e tentar caminhos não experimentados. No Dirceu houve um belo encontro. Caso o modo de articular um pensamento de dança fosse totalmente diferente daquilo que o Musicanoar acredita, com certeza as falas seriam levadas ao vento. Porém, lá em Teresina, percebemos que apesar de cada um dos artistas resolverem em cena suas questões de forma diferente estamos discutindo em cena os mesmos conceitos. Em outras palavras dependemos da capacidade de nós, artistas contemporâneos, viver com riscos e de aceitarmos a responsabilidade pelas conseqüências: cuidados e auxílios mútuos.

No Dirceu, a criatividade não está disponível para linha de montagem, e sim para ações que acionam no coletivo, pensamentos que se cruzam e estimulam encontros que reforçam outras formas de pensar organização. Com os Grupos Residentes, Núcleo de Criação do Dirceu, oficinas oferecidas ao NCD e à comunidade, Mapas do Corpo, Projeto Instantâneo, residências artísticas, espetáculos e palestras, Marcelo Evelin e seus parceiros elevaram Teresina a um ambiente de referência na construção de novos modos de pensar e compartilhar a arte contemporânea.

Não podemos admitir um entendimento de dança contemporânea que margeia em significados devaneios de pessoas sem “praticidade” ou ainda algo supérfluo. Como diz o astrofísico Jorge Albuquerque, dança é uma manifestação de complexidade e evolução, é um reflexo de valores mais elevados que a humanidade tem tentado vivenciar. É assim a tentativa de efetivação de formas elevadas de sobrevivência, formas essas, sabemos, bastante inacessíveis à maioria dos seres humanos, mas potenciais em todos eles.

Transitamos num discurso temporal. Marcas de uma práxis que se constrói a todo instante. Vivemos a ação em tempo real. Desta maneira se defrontam normas e formas. No nosso caso, trilhamos caminhos que apostam em outros tipos de autonomias de dança. Percebemo-nos artistas ativistas que sob outros modos de organizar dança encaramos ações co-adaptativas numa realidade emergente, de caráter urgente. O professor geógrafo Milton Santos nos lembra:

“Há quem prefira dizer que o tempo se unifica, mas não é disso que se trata. O que realmente se dá, nesses nossos dias, é a possibilidade de conhecer instantaneamente eventos longínquos e, assim, a possibilidade de perceber a sua simultaneidade. O evento é uma manifestação corpórea do tempo histórico, algo como se a chamada flecha do tempo apontasse e pousasse num ponto dado da superfície da terra, povoando-o como um novo acontecer. Quando, no mesmo instante, outro ponto é atingido e podemos conhecer o acontecer que ali se instalou, então estamos presenciando uma convergência de momentos”. (2008:196)

Foi um privilégio co-habitar provisoriamente o mundo do Dirceu, um espaço brotado da experiência enquanto existência. Como nos lembram as águas do rio Poti e Parnaíba - um longo processo de encontros que deságuam num grande oceano.

Helena Bastos é bailarina, coreógrafa, professora/USP e pesquisadora.

Referências Bibliográficas:

GREINER, Christine (2005). O Corpo. Pistas Para Estudos Indisciplinares. São Paulo: Annablume.

KATZ, H.(1994). Um, Dois, Três: A Dança é pensamento do Corpo. FID: Belo Horizonte

SANTOS, Milton (2008). A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ªed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque (2006). Teoria do Conhecimento e Arte - Formas de conhecimento - arte e ciência numa visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

Referência:
http://idanca.net/lang/pt-br/2008/09/18/corpos-entre-margens-2/8937/