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terça-feira, 26 de maio de 2009

CONHECER COM AFETIVIDADE?NIRVANA MARINHO


Em uma ensolarada tarde de terça, já conhecidos dias em que ele está em São Paulo, nos encontramos em uma pequena e sinistra sala da pós-graduação. Acompanhada de minhas perguntas, ainda que infinitas, de um gravador que não funcionou, de uma carinhosa colega, deparei-me frente a frente àquele que muitos admiram imensamente e cujas palavras e teorias marcam o coração e pensamento.

O Professor Jorge de Albuquerque Vieira teve sua graduação em Engenharia de Telecomunicações pela Universidade Federal Fluminense (1969), mestrado em Engenharia Nuclear pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1975) e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), lugar no qual travou contato com as professoras Helena Katz e Christine Greiner, que o “roubaram” para as reflexões da dança. Como isso se deu, como a arte influencia seu trabalho científico, como astrofísica tem a ver com o movimento e por que a arte, são alguns dos assuntos que conversamos nesta tarde. Aqui, transcrevo livremente nossa entrevista, com um sincero agradecimento a este mestre que nos ensina a sermos humildes com o conhecimento.

O contato com a arte se deu desde o início da sua vida, quando desenho e pintura faziam parte do seu cotidiano. A herança das artes veio desde criança, por influência de sua mãe, mas decidiu abrir mão deste hábito, na medida em que foi seduzido pela física, matemática e filosofia e, na graduação, cursou engenharia (o que foi a melhor opção, naquela ocasião). Três anos mais tarde, ingressou na UFRJ, Departamento de Astronomia. A pesquisa na universidade foi se tornando o dia-a-dia, enquanto a arte, mais distante.

Segundo o Prof. Jorge, algumas coisas são inevitáveis para uma boa formação. Uma delas é recorrer à filosofia. Depois veio a semiótica que possibilitou aplicar a análise de sinais à astrofísica, sua área de pesquisa. Portanto, ciência e filosofia se tornaram o magma de sua atuação em pesquisa e ensino. Quem assistiu suas aulas, pôde perceber isso veemente.

Depois do doutorado (1994) e de sua aposentadoria (1998), sua experiência como docente do COS (Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC) e do curso de Comunicação das Artes do Corpo, também da PUC, marcou o início do ensino da Teoria Geral dos Sistemas para artistas.

Deu-se, segundo ele, um estranho fenômeno: uma receptividade profunda da idéia de sistema por parte dos artistas envolvidos na atividade corporal, possibilitando refletir sobre a natureza da dança à luz desta teoria (TGS - teoria geral dos sistemas). Principalmente, os conceitos básicos de realidade e crise estão em jogo. Uma pausa, vejamos.

Umwelt é um conceito de Uexkull (1992) para definir “mundo entorno, mundo à volta, mundo particular” para designar como interagimos com o ambiente. O conceito de Evolon, defendido por Mende (1981) é “uma proposta fenomenológica, apoiada na termodinâmica dos sistemas abertos da dialética entre organização/ desorganização, entropia/negaentropia”. Dito de outro modo, um modo de explicar crises sistêmicas, tomando por conta que todo ganho de complexidade é o ganha pão de todo sistema. Referência: o livro Teoria do Conhecimento e da Arte (2006) do nosso entrevistador descreve mais profundamente e discute estes conceitos.

O Prof. Jorge constatou que, em uma realidade sistêmica, o corpo vive constantes evolons. Isso foi e ainda é um estímulo para o pessoal da dança entender o que acontece quando criamos movimentos: crises.

Inevitavelmente pergunto sobre a necessidade da arte nesta realidade sistêmica. Ou seja, por que criamos? Por que fazemos estética?

O professor, sem hesitar, afirma que arte é uma estratégia evolutiva do mundo. A arte não é meramente um adereço, e sim faz parte da configuração da realidade. Como uma forma de conhecimento, lida com conceitos complexos da relação do ser vivo com o entorno, exigindo sensibilidade, e desprovendo muitos de nós, criadores, de um treino lógico, formal, como o da matemática, por exemplo.

Interrompo-o para falar de algo que se tornou a marca registrada, mas perfeitamente desejável de ser copiada do professor, que é sua afetividade com o conhecimento e com seu aluno.

Ele responde, com a arte e os artistas, “me sinto em casa”. É importante fazer o que se gosta, assim como ele aprendeu com os pais desde muito cedo.

Ademais, a ciência e a arte obedecem à lógica de construir conhecimento para se viver, por subsistência, uma competência do próprio saber e daquele que o faz. Por sua dificuldade e complexidade, uma única forma de saber não satisfaz. É necessária a fusão de várias formas de conhecimento e, não menos, é fundamental a humildade: para amar o que se faz, para reconhecer quando não basta um só saber, quando percebemos, neste ínterim, que o outro é diferente de você e que, ao lado do domínio vital sobre o saber, o poder de troca é igualmente vital.

Indispensável: discutimos sobre o saber-poder.

Jorge continua: não faz sentido pleitear autoridade de conhecimento. Devemos estar alertas e prontos para aprender com os outros. Ele faz uma linda metáfora com o restaurante: quando estamos em um restaurante, olhamos o prato de outro e dizemos - “puxa, isso deve ser bom” e queremos provar. Assim se dá a dimensão afetiva com o conhecimento: pelo prazer. Uma excelente maneira de aprender é perceber o prazer que o conhecimento fornece ao outro.

Novamente, por mais uma milionésima vez, me deparo comigo dizendo: “putz, é isso mesmo”. Como isso é real para quem faz arte, tanto a parte do prazer, como da autoridade. Estranho paradoxo.

O professor advoga: a vida fica mais suportável com o prazer.

Voltamos à estética.

A dimensão subjetiva e a questão de valor. Não. Segundo o professor Jorge, sua visão evolucionista não permite discutir estética a partir somente da subjetividade. Segundo ele, toda subjetividade tem uma raiz objetiva, não aparece do nada. Há uma realidade prévia que não depende de nós, mas se força em nós, que é a realidade, aqui entendida como sistêmica e sígnica. Ou seja, há vida em evolução antes de nós, há leis que regem esta realidade.

Segundo a biosemiótica, as estratégias de sobrevivência de seres vivos são estéticas. A reprodução, os ninhos. São estratégias de permanência.

Penso aqui nas inúmeras estratégias e táticas que formulamos em arte para existir, para evidenciar, para discutir velhos/novos e renováveis assuntos. Criar.

A estética, segundo o professor, é uma otimização, um grau de organização e de eficiência para permanecer, nada mais. Esta é raiz objetiva das razões pelas quais, subjetivamente, criamos. Sobreviver exige complexidade. Se você diz: vivo, mas sem complexidade, mas sem um grande amor, por exemplo (e que lindo exemplo!) - acredita Jorge -, você não viveu de fato. A estabilidade é confortável. E, diante da complexidade, este conforto faz com que o melhor seja a defesa.

Pausa. São tantas as situações em que o conforto e a defesa nos pareciam fora de contexto, em que pelejamos por complexidade, mas as situações de autoridade e controle nos cercam de razoabilidade. Por isso pergunto: por que tememos a complexidade, professor?

Complexidade exige tempo e trabalho.

Aqui, este artigo merece uma imensa pausa. Se quiser, pode ir tomar um café.

Pergunto se o professor assiste dança.

“Sim, procuro perceber nos espetáculos sistemas e lógicas”. Ele relata estar aprendendo a ler espaço-tempo, expressividade, música, cores. Também comenta do fascínio pela performance, como desempenho, e do seu vício em querer entender, interpretar, hábito herdado de sua formação nas ciências ditas exatas.

Portanto, dito isso e não pouco ou menos, o que muda no artista em contato com este nível de aprofundamento e entrelaçamento teórico?

Percebem uma dimensão extra, segundo Jorge. O que é possível de ser explicado, planejado. A dimensão sistêmica pode informá-los do que acontece com eles no ato de criação. Ele diz: “não sei até que ponto isso é bom, pode-se cair na situação de querer interpretar o tempo todo. Nem tudo pode ser traduzido. O sentimento é primeridade” (referência à categoria fenomenológica de Peirce, na qual se insere sensações, qualidades, sentimentos não descritíveis, que ocorrem em um rápido instante, seguidos ou misturados com secundidade e terceridade, outras duas categorias que explicam, juntas, todo e qualquer signo existente - para saber mais, vale consultar livros sobre semiótica peirceana).

Ainda sobre os artistas que se depararam com a ciência, ele comentou como as dançarinas, coreógrafas e os alunos que passaram e passam por ele lidam com essas provocações filosóficas. Os alunos são diferentes, depende de cada um: tem aquele que absorve e se organiza, tem aquele que só sente que há algo ali, e outros, um grupo pequeno, para os quais nada acontece.

Como todo e qualquer tipo de processo de aprendizado, leva tempo e dá trabalho. Criar complexidade no fazer. E por isso que estudamos?! No restaurante das boas idéias, do prazer de desfrutá-las, o convite do Prof. Jorge é de perceber o mundo com arte.

Conclui o professor, que a aproximação com tais teorias (TGS, semiótica) ajudam a perceber o mundo, e isso leva tempo, o que é um atributo do verdadeiro conhecimento, e que a arte, por sua vez, nos diz como sentimos, como nos inserimos neste mundo.

Bom apetite!

http://idanca.net/lang/pt-br/2007/12/06/conhecer-com-afetividade/5169/

segunda-feira, 25 de maio de 2009

UM, DOIS, TRÊS, a dança é o pensamento do corpo.Helena Katz.


O livro trata dos seguintes argumentos: percepção/cognição, conhecimento e evolução. Aproxima os conhecimentos científicos dos conhecimentos da arte através dos Princípios de Gödel e de Heisenberg.
Propõe a discussão de um corpo plural e complexo, que transita socialmente, com capacidade de adaptação, um corpo que não é máquina, mas um sistema aberto a trocas e contaminações, transformando-se e transformando o meio em que vive numa relação em que corpo e ambiente mostram-se diretamente implicados. Em outras palavras, relações entre corpo e ambiente a partir de uma perspectiva co-evolutiva, questionando a dança como linguagem corporal universal e tentando precisar conceitos, contra os “achismos”.
A semiótica de Peirce conduz às investigações na obra, assim como a física contemporânea, as ciências cognitivas e a teoria evolucionista neo-darwinista, que entram como dados empíricos, para reforçar a idéia para a elaboração de uma teoria (corpomídia) sobre o entendimento de dança. Helena Katz, propõe a importância de elaborar para a dança uma teoria com base em aproximações naquilo que teoriza, ressaltando que não é uma teoria completa, mas uma possibilidade de entendimento sobre dança e suas ações. Na sua citação sobre o universo ela cautelosamente enfatiza a discussão científico-filosófica na compreensão dos fenômenos da vida. Ou seja, com sua amplitude de conhecimento ela nos direciona a caminhos que resvalam para (re)conhecer que estamos envolvidos em implicações fenomênicas nas quais o corpo é um sistema aberto e imerso em processos auto-organizadores.
Os conceitos de Peirce são os primeiros a serem trabalhados na obra; fala da processualidade da leitura sobre as coisas do mundo,e da inexistência de essências eternas. Ressalta as implicações de quem está observando naquilo que observa. Enfim, em sua discussão ela amplia e ressalta a importância do estudo do corpo, de acordo com os princípios anteriormente citados, numa tentativa de quebrar padrões de pensamento segundo os quais a dança, por falta de produção atualizada, é conhecida como Linguagem do Indizível e Linguagem corporal Universal, como diz Fabiana Dultra em sua tese Parâmetros para uma história contemporânea: Mecanismos de Comunicação entre corpo e dança.
Muito importante na obra são as questões acerca do movimento: o corpo no seu contexto biológico com seus aspectos físico-cognitivos encontra-se em ação não determinista, ou seja, as imprecisões existem, fazem parte da ação e geram movimento. Assim, segundo a autora cada movimento nunca será igual, resulta de um ajuste (corpo/mente) e gera um evento único irrepetível.
Helena Katz, deixa claro em suas argumentações que matizes que geram movimento, são anteriores a ele, e sua ação requer um programa motor que cria um padrão espaço/tempo de acionamento das células. Falar desta forma de corpo e movimento implica afirmar que o universo é um fluxo de interações, assim, corpo e ambiente estão concomitantemente em ação e a relação corpo com ambiente é uma conseqüência da funcionalidade dos órgãos do sentido. Sendo assim, no momento que o movimento aparece, já é resultado da percepção; ambos atuam juntos e enquanto o cérebro traduz as informações perceptuais o corpo age similarmente.
A autora reflete sobre uma questão importante em relação à física clássica: que mesmo com o rigor das leis mecânicas existe o imprevisível, o improvável, e o compara ao tecer de uma teia, sem princípio nem fim determinado, poeticamente.
Discutir, articular idéias, consequentemente produzindo conhecimento, faz parte do processo evolutivo, assim como em outras áreas, produzir conhecimento em dança tornou-se uma necessidade evolutiva para sua permanência. Como diz a autora, o conhecimento do corpo evoluiu, e para se dar conta desta complexidade que envolve seu o estudo (elementos químicos, tecidos e impulsos nervosos) surge à necessidade de criar conexões com outras áreas. Assim, traz a semiótica de Peirce com um princípio de cooperação nesta ação de formulação teórica, para criar uma provocação e respaldar que como seres humanos nós aprendemos a realidade com formas simbólicas, representamos algo por analogia e não por semelhança, em relação ao objeto que nos referimos.
Em sua discussão a autora diz que nosso cérebro se compõe de mapas corticais somato sensórios e estes se reconstituem a cada novo dia e a cada novo treino.Assim, o treino, ou técnica corresponde a um determinado repertório de movimento, ou seja, uma construção de um determinado mapa cortical. Cada vez mais implicada com a ciência, a dança consegue nesta parceria, a construção de outras formas de conhecimento, também mutáveis e isso está implícito na citação em a autora faz um paralelo entre processo evolutivo e instalação da dança em um corpo. Para isso ela fala de sistemas que se organizam, da ocorrência de flutuações que mudam este estado de absoluta certeza, e que a origem da vida implica em seqüências de instabilidades sucessivas,a partir de uma perspectiva co-evolutiva. A dança analogamente emerge destes acordos, cada obra de dança ao instalar-se esta sujeita à adaptação, seleção e variação. A mutabilidade pela construção de outras formas de conhecimento, também mutáveis, não deterministas e a imprecisão dos acionamentos físico-cognitivos entram em acordo aos princípios de Gödel (Princípio da incompletude) e de Heisenberg (Princípio da Incerteza).
A dança como pensamento do corpo é aqui exemplificada como reflexão teórica/prática no qual o pensamento é tido como organizador de informações/ações, movidas por propósitos. A dança como mecanismo evolutivo ganha complexidade como se organiza no corpo e a ação se processa mesmo que não tenha visibilidade, ocorrendo um fluxo inestancável de conexões e atualizações adaptativas em processo.


Resenha-Iara Cerqueira
Mestranda em Dança pelo Programa de Pós Graduação em Dança – PPGDanca / UFBA, especialista em Fisiologia do Exercício (UNEB / BA) e Instrutora da Técnica de Pilates, Polestar Education, USA. Diretora, bailarina e preparadora corporal do HIS Contemporâneo de Dança.Atualmente desenvolve pesquisa sobre o tema Estratégias Coreográficas, processos colaborativos, sob a orientação da Profa. Dra. Adriana Bittencourt (PPGDanca / UFBA).

ENTRE A DANÇA E A PALAVRA: A ELABORAÇÃO DE SENTIDOS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA OBRA COREOGRÁFICA “PARTES SEM ROTEIROS”


Os vermes rastejam a esmo pelo chão ao som dos sapatos que levam os passos de quem adentra o ambiente. Os espectadores, cada qual com sua história, memória e imaginação, pé ante pé, pisam lentamente a uma distância segura para que não haja qualquer forma de contato, esbarro ou colisão, com os estes seres obscuros que atuam neste território. Atenção! Sem aviso nem cuidado, Partes sem Roteiros começa como um processo já em andamento não se fazendo anunciar pelo primeiro, segundo ou terceiro sinal.
Em princípio a impressão é de que os corpos não se movimentam. Gritos explodem em meio ao silêncio encontrando eco no cenário vazio. Na tela ao fundo, a imagem de um boi é projetada e suas partes em recortes são numeradas e nomeadas: cupim, bisteca, coxão mole, coxão duro, picanha. Sem qualquer objeto de cena, pernas ou rotunda, o ambiente é revelado gradativamente na medida em que as luzes brancas do palco se acendem, destacando as paredes escuras da sala. Os vermes ainda pulsam. Os espectadores, trazendo cada um o seu próprio recorte de jornal adquirido na porta de entrada, no qual se destaca por meio de um sinal uma notícia qualquer, são sugestionados a observarem a cena, induzidos pelas informações assinaladas, a fim de torná-los participantes ativos num coletivo a presenciar os movimentos daqueles corpos rastejantes.
Em Partes sem Roteiros, o processo criativo expande-se do entrelaçamento entre o poema Partes do Corpo , de Domiciano Santos, e a analogia entre Salvador contemporânea e Auschwitz para correlacionar aspectos consonantes a essas realidades, circunscritas a estes dois ambientes histórico-culturais distintos. Annete Becker, professora de história na Universidade de Paris, em Extermínios: O Corpo e os Campos de Concentração, expõe a realidade nua e crua destes ambientes de aniquilamento humano criados no período entre guerras, a partir de 1918 na Rússia e de 1933 na Alemanha, e escreve:

A falta de roupas ou o uso de roupas não adaptadas ao clima, farrapos que deixam à mostra a nudez fazem parte do mesmo processo: tudo é uma afronta ao pudor [...]. Todo povo nu, nu por dentro, desnudado de toda cultura, de toda civilização, um poço moído de pancadas, pensando obsessivamente nos paraísos e alimentos esquecidos; mordida íntima das desgraças – todo esse povo o tempo inteiro. (BECKER, 2008, p. 429)

Nos campos de Auschwitz, internados para serem reeducados, os sujeitos, mantidos isolados e tratados como criminosos não “reeducáveis”, eram submetidos à razão de um Estado, cuja pretensa ideologia totalitarista pretendia banir as diferenças por lhes barrar a marcha na instalação de uma nova da sociedade. A fome, os trabalhos pesados, os insultos, as pancadas e as torturas instauravam um ambiente degradante onde a doença se perpetuava nos corpos, que, em progressivo estado de putrefação, culminava na produção de mortes em série. Ao negar-lhes a própria humanidade, os ideais nazistas consistiram em modos autoritários com ações e atitudes perversas cujas metas resultaram na regressão da conquista do caráter plural do sujeito no desfecho do mundo moderno, instituído pela dupla explosão de Hiroshima e Nagazaki.
A propósito do corpo, do não-sujeito e da vida nua nos campos de concentração, além de Annete Becker, outros pensadores também se dispõem a refletir com diligência aspectos concernentes a esses ambientes históricos e correlacioná-los às relações de poder exercidas em sociedade contemporânea. Giorgio Agamben (2002), discute o estado de exceção que se instalou na sociedade na norte-americana após o acontecimento de 11 de setembro de 2001, marcado pelos atentados ao World Trade Center e ao Pentágono. Segundo o pensador, o ato patriótico dos Estados Unidos de manter preso indefinidamente o estrangeiro suspeito de atividades que ponham em risco a segurança nos EUA traz a novidade da proposta de anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo o homo sacer, um ser inominável e inclassificável cuja vida nada vale, banido da sociedade, inserido numa zona de indistinção. O estado de exceção, tal como nos períodos romano e entre guerras, como paradigma do governo, suspende os direitos do cidadão e aperfeiçoa seus mecanismos e seus dispositivos funcionais, mostrando tendência a se transformar em uma prática governamental duradoura. Viola-se a liberdade e os direitos do cidadão ao mesmo tempo em que nasce a resistência do cidadão à opressão, instalando a oposição entre sujeito e governo, cuja relação se mantém sob forte tensão. Ainda constata Agamben a ausência da lei diante da necessidade. Segundo ele, a necessidade cria a sua própria lei e se justifica como “uma transgressão em um caso específico por meio de uma exceção (...), o poder do soberano, em situação de necessidade, de dispensar a lei” (idem, p.28). Para o autor, as teorias da necessidade e da exceção são coincidentes, um caso particular que escapa à obrigação da observância da lei. A necessidade apresenta-se como um dado objetivo, que implica claramente num juízo parcial, pois o conceito de necessidade é subjetivo e relativo ao poder que se quer atingir. “Aquilo que a necessidade decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito” (idem, p. 29). Contudo, observa o autor que em nossa sociedade contemporânea não se trata apenas a um poder repressivo para controle da vida, mas, sim, de um biopoder que se exerce também nas relações entre os corpos, comandando a vitalidade social e modulando a existência. Assim, complementa Greiner (2007), de um lado o biopoder, que administra a morte e a sobrevida, e do outro os sobreviventes, intensifica-se, a dualidade entre natureza (vida ela mesma) e cultura (vida qualificada) e retrocede-se, conseqüentemente, “nos acordos culturais realizados durante os processos evolutivos dos diversos saberes” (idem, p.15).
A analogia Salvador/Auschwitz aprofunda-se encontrando raízes na violência que a cada dia aumenta, afeta e transforma a cidade de Salvador. Considerada uma metrópole em expansão, Salvador, capital do Estado da Bahia, tem mostrado nos últimos anos aumento expressivo na urbanização da violência, bem como a violência das desigualdades sociais e econômicas e a violência da discriminação das diferenças (Espinheira, 2001). O embrutecimento de pessoas que vivem a condição de violência, de um modo geral, decorrente da resistência à exclusão social, resulta de um fenômeno complexo que abarca múltiplas causas e conseqüentemente incide sobre a sociabilidade e a vida cotidiana dos indivíduos em resposta às condições desumanas na busca de sobrevivência, manifestando-se numa pluralidade de ações e de direções. A violência como modo de ser, em boa medida provocada por situações de desamparo, de falta de cuidado e de humilhações, gera a cada dia ambiente urbano mais favorável à marginalidade e ao crime. Mecanismos de coerção da violência não são capazes de reduzir os altos índices de homicídios gerados por situações trágicas, as quais em geral mostram-se vinculadas às decisões daqueles que, aprisionados em um modo de ser, na busca de suprir suas necessidades, e sem possibilidade de escolha, determinam trajetórias de morte em meio às circunstâncias que lhes são impostas.
É válido ressaltar que Partes sem Roteiros é uma pesquisa artística de dança contemporânea realizada pelo grupo His Contemporâneo de Dança, de Salvador/BA, realizada por uma equipe de quatro bailarinos – Iara Cerqueira e Sandra Corradini (mestrandas do Programa do Pós-Graduação em Dança da UFBA, Joubert Arrais (mestre em dança pela UFBA) e o bailarino Jorge Santos - sob direção de Iara Cerqueira, com o propósito de investigar as relações entre corpo e ambiente na cidade de Salvador através da técnica de improvisação dirigida. A execução conta com procedimentos técnicos adequados à quebra de cadeias habituais de movimentos e à reorganização de informações, tendo por base a casualidade e as escolhas espontâneas, fundamentando-se no imprevisível e na percepção que antecede o movimento. Apresentado desde abril de 2008, Partes sem Roteiro é considerado pelo grupo um trabalho em processo, o que, em outras palavras, diz respeito a uma forma não acabada, inconclusa, e flexível, que permite a inclusão e/ou exclusão de proposições direcionadas à investigação e à construção não apenas de corporeidades e de ambiências, como também da dramaturgia, podendo ser apresentado em espaços diversos. Definidas a partir daquilo que o grupo deseja focar e/ou diante daquilo que o trabalho impõe como necessário investigar, as cenas/partes que compõem o trabalho, segundo os bailarinos intituladas Vermes (ou Lesmas), Curral (ou Matadouro), Paredão, Partes do Corpo/Leilão e Televisão, constituem-se em situações propiciatórias à construção de sínteses corporais transitórias, cujas configurações possibilitam a observação de signos pelo espectador e a transposição destes para a sua própria realidade. Como obra aberta, é pressuposto que o trabalho propicie leituras diversas de modo que um olhar à primeira vista não seja tido como fonte primeira e única de informação, mas, sim, que esta relação viabilize a reestruturação do pensamento a partir da capacidade criativa e interpretativa de cada espectador.
Na interface arte/ciência destaca-se como eixo teórico no processo de construção da obra coreográfica a proposição de Christine Greiner e Helena Katz sobre o corpomídia, conceito este que se apóia no entendimento co-evolutivo dos processos vivos. Aplicado ao corpo que dança o corpomídia reinsere velhas perguntas da dança em um outro contexto, permitindo, assim, novas respostas para questões sobre a universalidade desta linguagem ou as relações entre forma-expressão, razão-emoção, teoria-prática, indivíduo-sociedade e corpo-mente (Katz, 2005). Segundo Greiner (2005), é intrínseca ao corpomídia a sua relação com as construções dos discursos, através quais as informações podem ser processadas, envolvendo o sistema cognitivo, mensagens e memória. A autora aborda o corpo como um recipiente por onde a informação não é simplesmente abrigada, mas, sim, o resultado dos cruzamentos entre as novas informações que chegam em negociação com aquelas que já estão presentes. Desta forma, o corpo passa a ser mídia de si mesmo, em processo evolutivo de comunicação, sendo que nesses processos, as metáforas são incumbidas de transcodificar uma experiência em outra, ou seja, organizam a lógica das ações do corpo em uma lógica inteligível à compreensão humana, produzindo sentidos, novas possibilidades de movimento e de conceituação.
Como uma forma de raciocínio lógico do corpo, a dança, como é entendida em Partes sem Roteiros, é um fenômeno complexo no qual processos físicos de pensamento são desencadeados através da investigação de matrizes, geradoras de movimentos, realizada por meio dos experimentos do próprio bailarino, inserido nas problematizações emergentes das relações espaço-temporais circunscritas à realidade da cena. Para aproximar da noção do corpo que dança do modo como aqui é tratado, Katz (2005) contribui com a observação sobre a não separação entre corpo-mente inerente a esses processos, referindo-se ao movimento como resultado da cadeia de acontecimentos perceptivos que circulam no cérebro, que passam a habitar o corpo como uma reprodução plástica da geografia neuronal. A complexidade envolvida nesta operação abrange quase que simultaneamente estímulos, cérebro, sinapses e mapas neuronais, percepções e sensações, tomada de consciência, movimento, estimulando a pensar a dança como forma de pensamento do corpo, dada pela sua configuração similar à estrutura cartografada no cérebro. A dança como percepção é dinâmica e constitui-se do mesmo modo que os tecidos nervosos, a pele, o cérebro, nas trocas com o mundo. Mas para isso, complementa Katz, “a dança precisa estar sendo feita. Um fazer que é uma presentificação de instantaneidades perceptivas, onde a distância tempo-espacial entre um antes e um depois parece estar dissolvida. Os tempos internos do corpo escapam ao olho que observa” (idem, p. 87).
O homo sacer, sujeito inclassificável e matável, tal como é conceituado por Agamben, é compreendido em Partes sem Roteiros através da metáfora verme, cuja função é vivificar a lógica corporal organizativa dos movimentos realizados pelos bailarinos em cena. Originados a partir de ondulações da coluna vertebral, os movimentos ocorrem no plano baixo seguindo um fluxo contínuo, com variações relativas às propiocepções de cada bailarino em relação a sua real necessidade de se deslocar no espaço físico. A trajetória a ser percorrida parte da periferia para um ponto central do espaço cênico, sendo que os corpos-vermes dirigem-se solitários para se agruparem, a constituírem um aglutinado e, assim, atingirem uma configuração em equilíbrio dinâmico.
Dos Vermes ao Curral, a passagem entre as cenas ocorre com freqüência por meio de uma rápida mudança da posição dos corpos dos bailarinos da horizontalidade à verticalidade, reconfigurando-os de vermes em sujeitos. Um a um, os bailarinos levantam-se e caminham em direção as suas roupas dispersas no espaço, únicas peças a colorir o ambiente, vestindo-as sobre as tarjas pretas que lhes cobrem as partes íntimas. Em princípio, movidos por esse único propósito, os bailarinos desenham um ziguezaguear espacial, cuja dinâmica e complexidade só aumentam após estarem completamente vestidos. A partir de então uma nova regra passa a reger as ações na cena: Toda relação que houver entre os bailarinos deve ser comandada ora pelo verbo invadir ora ocupar, sendo que a escolha deve estar condicionada às percepções de cada intérprete, a ser decidida no instante da cena qual das duas irá executar.
As relações entre os corpos observadas em Salvador configuram um cenário singular, com valor histórico conjugado à mistura dos povos e de tradições culturais para o qual converge o turismo em meio à violência que afeta a cidade. A atmosfera que advém deste contexto o alimenta e assombra não apenas aquele que está de passagem como também o cidadão local. Informantes aconselham: Não leve jóias, relógio, máquina fotográfica, filmadora, celular, nada no corpo que tenha valor. Evite caminhar em ruas desertas e escuras, avenidas, viadutos, sozinho e também acompanhado. Paulista, gaúcho, carioca, mineiro e outros, nesta terra, diferem-se dos negros e são corpos estrangeiros. Está na cara, na pele, na fala, no gesto, nos genes, no jeito, no comportamento. A cinesfera pessoal é ampla e o estado é de alerta para tudo e para todos. Contudo, a curiosa percepção da espacialidade leva corpos cotidianos a realizarem contatos ora ríspidos, ora agradáveis, com trocas de informações variáveis. Não é raro corpos se esbarrarem e se trombarem pelas ruas como máquinas e sequer se olharem, trocarem sorrisos e tampouco desculpas. Também é notável que enquanto uns não sabem ou se dispõem a informar a distância entre dois pontos da cidade, indicar caminhos e referências que orientem aqueles que desconhecem ou se perdem no rumo de suas trajetórias, outros são capazes de mudar seus percursos para acompanhá-los aos lugares aonde desejam chegar. Ainda existem aqueles que se aproximam e relatam momentos íntimos de suas vidas, compartilhando experiências de amor, de prazer, de dor e de solidão. Os vínculos dificilmente se sustentam e reitera a liquidez do homem pós-moderno.
Por residir há pouco tempo em Salvador, tais observações contextualizam-se com ênfase nesta pesquisa artística por constituírem parte de uma conjuntura para qual converge a necessidade de compreender o meu próprio corpo estrangeiro, inserido no território baiano, que vivencia ao mesmo tempo estranhamento e um particular processo de adaptação. As percepções do outro e do lugar do outro deslocam-se para um plano no qual se elevam questões referentes ao meu processo de vida e de aprendizagem, impondo reflexão e análise de antigos hábitos e costumes, cujos padrões até então mantiveram-se estáveis, sendo sequer questionados, instaurando um ambiente conflitivo e fértil para as investigações referentes ao processo criativo do espetáculo. Investigar o meu próprio corpo inserido no contexto contemporâneo de Salvador implica, em primeira instância, em compreendê-lo como um corpo-pensamento em constante processo de reorganização decorrente da produção de novas sínteses, configuradas a partir da trocas informativas nos processos interacionais com o ambiente (VIEIRA, 2005). Ao propor a inter-relação entre pesquisa prática e teórica sobre o corpo que transita socialmente, transformando-se e transformando o meio em que vive, numa relação em que corpo e ambiente se co-determinam e mostram-se diretamente implicados (LEWONTIN, 2006), o processo criativo de Partes sem Roteiros, além de favorecer a percepção das relações entre arte e vida, estimular e promover a elaboração de novos sentidos, valorizar a experiência individual e a singularidade do bailarino-criador, contribui para a compreensão da diversidade do comportamento humano.
Readentrando em território cênico, que é reduzido gradativamente pela progressiva diminuição do espaço delimitado pela luz, os verbos invadir e ocupar entram em cena, implementados nos distintos corpos dos bailarinos, agora configurados como sujeitos, dispostos na posição vertical. Fugir, confrontar, desviar, dissimular, abraçar, beijar, carregar, prender, cercar, bater, entre outros, são ações derivadas que comumente são realizadas pelos bailarinos de acordo com as oportunidades que lhes são oferecidas na cena em constante reconfiguração. Sem qualquer previsão sobre as ações que podem decorrer das relações entre eles durante seus percursos, o grande desafio é agir e ao mesmo tempo manter a conectividade não apenas entre corpo e todos os elementos que estruturam a cena, como som, luz, etc, como também entre os corpos em movimento. Em meio a esse contexto no qual a dança do corpo-a-corpo destaca o exercício das relações de poder, suspendem-se instantaneamente os movimentos no palco, quando, no proscênio, um dos bailarinos traça com giz um risco no chão, demarcando os limites entre os territórios do palco e da platéia, enfatizando a separação, o isolamento e a relação observador/observado.
Ao som de uma única nota aguda e contínua, os quatro bailarinos caminham em direção à linha de frente, posicionam-se cara a cara com a platéia e a observam. As roupas coloridas são desvestidas, vestidas, desvestidas e vestidas novamente, peça por peça, muitas peças, sem ordem, lentamente. Os corpos, contudo, sem chegarem a se desnudar, pois não se retiram as tarjas pretas, reafirmam como corpos-vermes os corpos dos sujeitos, tais quais foram vistos na primeira cena, na posição horizontal. Como num paredão de fuzilamento, os corpos, mesmo despidos de toda cultura, não se silenciam antes de serem exterminados.
Ao lado do conceito do homo sacer, de Giorgio Agamben, destaca-se também nesta cena a noção do corpo baiano desde sempre colonizado. Salvador, uma cidade praiana, com corpos expostos seminus, com vestimentas de cores diversas, para os quais convergem olhares estrangeiros, cujos focos incidem sobretudo nos movimentos expansivos antes mesmo dos ouvidos acessarem as vozes, fala ou grito, que sustentam os traços fenotípicos visíveis nas ações e expressões de seu povo. Nesta relação entre observador e observado, os clichês e esteriótipos tendem a se reforçar, estabelecendo fortes conexões aprisionadoras, mantidas sob controle, condicionadas aos interesses políticos, os quais, em geral, visam a exportação das imagens exotizada e erotizada do soteropolitano e de sua cultura a serem consumidas tanto no Brasil, como no exterior. Como um pedaço de carne à venda, o corpo baiano soteropolitano é esteticamente tratado a fim fortalecer esta ligação, a qual, do modo como se apresenta, favorece a co-evolução de padrões de comportamento específicos, adaptados em resposta à liberdade cerceada, cuja pressão lhe nega a individuação ao mesmo tempo em que corrobora a manutenção e a atualização constante do poder na ordem através da qual se aplica.
É Joubert quem estabelece a passagem entre as cenas Paredão e Partes do Corpo. Joubert: primeiro e único voluntário a entrar no matadouro. Sob um foco central, ele desenha no chão o seu próprio círculo-território, o adentra, deita-se no chão e movimenta-se articulando as partes de seu corpo. Sandra: designada a imobilizá-lo e segurar-lhe as partes do corpo anunciadas em meio a sua declamação do poema Partes do Corpo, direcionado à platéia. Caminho até ele e aguardo a voz de comando. Iara: responsável por desenhar com giz no chão as partes do corpo anunciadas. Ela caminha até Joubert e aguarda o momento de exercer a sua função. Jorge: declamador do poema e quem determina quais as partes do corpo serão desenhadas, anunciando-as, uma a uma, em alto volume, em meio a declamação do poema.
Ao longo da apresentação da obra, todo o processo criativo de Partes sem Roteiros, incluindo ensaios e apresentações realizadas anteriormente, pode ser acompanhado pelo espectador na tela ao fundo, onde imagens são projetadas por um VJ a partir de um banco de imagens pré-selecionadas. Através de edição realizada em tempo real, que se constrói em sintonia com os movimentos dos bailarinos, o espetáculo apresenta uma configuração situada na interface dança/tecnologia, abarcando processos co-evolutivos de distintas naturezas implicados entre si. Seqüências de movimentos são reorganizadas e recriadas a partir de imagens que ora são distorcidas, ora repetidas, buscando coerência e sincronia rítmica com a dança realizada no palco a fim de construir um diálogo pautado na sensibilidade e nas percepções momentâneas, cujo enfoque recai sobretudo na interação entre estas distintas linguagens artísticas.
Para assistir a essas imagens, os bailarinos, então, dirigem-se à platéia e sentam-se em poltronas localizadas entre os espectadores, e, inquietos, levantam, sentam, trocam de lugar e acomodam-se de diversas maneiras, sem pararem de se mover. Suas atenções, em princípio voltadas para a tela, são aos poucos deslocadas para o lugar do outro, construindo-se momentos propícios para brincadeiras, cujos objetivos é senão ocupar, por meio de estratégias particulares de cada um, o assento que pertence ao outro. Provocações, dissimulações e trapaças intencionam reforçar a vida besta, nua e banal do homo otarius, que, imerso na futilidade dos prazeres diários, deflagra o último estágio do niilismo contemporâneo. O que importa nesta relação é retirar o outro de seu lugar habitual e confortável, levando-o a encontrar, neste campo de batalha, uma nova forma e posição, para que, de certo modo, reorganizando-se, dê continuidade a este processo monádico, no qual prepondera a letargia, a inércia, a indiferença, a impotência, a lassidão. Incessantes, os bailarinos configuram inúmeras organizações. Deslocam espectadores, sentam em seus colos e com eles trocam palavras, rolam no chão, deitam-se uns sobre os outros, inconstantes e imprevisíveis. Gradativamente as imagens desaparecem na tela, permanecendo acesas apenas as luzes da platéia. Lentamente guiadas para o black out, as luzes que preenchem o espaço dão lugar ao som produzido pelos bailarinos, os quais conduzem o espetáculo ao fade out final, encerrando, por fim, o homem numa prisão imanente, cujo corpo é reduzido à vida nua.

1Partes do corpo / Narizouvidogarganta / Partes de fora e de dentro / partes do corpo em pedaços / Enjauladas partes / Partes o corpo em pedaços / Partes sem roteiros interessantes / Partes do corpo em pedaços / Algemado / Acorrentado / Enjaulado partes / Partes sem filiação / Sem mãe sem pai nem irmãos / Aparte e sem ninguém / Apenas no corpo partes.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Hommo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

BECKER, Annete. Extermínios: o corpo e os campos de concentração. Disponível em: http://www.helenakatz.pro.br/ midia/ helenakatz 71212080731.jpg. Acesso em: 02 jun. 2008.

ESPINHEIRA, Gey. Sociabilidade e violência na vida cotidiana de Salvador. In: Bahia Análise e Dados, Salvador-BA. SEI v.11 n.1 p. 08-16 Junho. 2001. Disponível em: http://www.sei.ba.gov.br/publicacoes/publicacoes_sei/bahia_analise/analise_dados/pdf/violencia/pag_8.pdf. Acesso em 19 jul. 2008.

GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

GREINER, Christine; AMORIN, Cláudia. Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007.

KATZ, Helena. Um, dois, três: A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte FID Editorial, 2005.

LEWONTIN, Richard. A tríplice hélice: gene, organismo e ambiente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.



Currículo do autor (Sandra Corradini):

Aluna regular do programa de pós-graduação em dança da UFBA, psicopedagoga, graduada em dança pela Unicamp. Atualmente atua como criadora-intérprete, integra como bailarina o grupo His Contemporâneo de Dança e, como mestranda, realiza pesquisa acadêmica em dramaturgia corporal sob orientação da Profª. Drª. Fabiana Dultra Britto, com apoio da Fapesb.

Poema Partes do Corpo, de Domiciano Santos.


Partes do corpo / Narizouvidogarganta / Partes de fora e de dentro / partes do corpo em pedaços / Enjauladas partes / Partes o corpo em pedaços / Partes sem roteiros interessantes / Partes do corpo em pedaços / Algemado / Acorrentado / Enjaulado partes / Partes sem filiação / Sem mãe sem pai nem irmãos / Aparte e sem ninguém / Apenas no corpo partes.