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domingo, 7 de junho de 2009

Divagações sobre um comum de diferenças




No Brasil uma série de fatores distintos tem contribuído para um contexto de efervescência no campo da dança: o surgimento de novos cursos técnicos, de graduação, pós-graduação, residências, a criação de redes de comunicação, de produção e colaboração, o aumento considerável de publicações, o reaparecimento de algumas linhas de subvenção e o redimensionamento de outras, o fortalecimento das mostras em detrimento dos concursos de danças etc. são alguns exemplos de tais fatores.

Não há como negar que o conjunto desses diferentes acontecimentos está promovendo consideráveis deslocamentos nas práticas de criação e em seus respectivos produtos. Nota-se, na criação, uma generalização de processos guiados pela vontade de experimentar e, na cena, produtos coreográficos muitas vezes difíceis de serem reconhecidos como dança.

A prática experimental em dança, bem como noutras linguagens da arte, não é algo novo, de nossa geração. O gesto artístico observado nos vestígios deixados por gerações passadas indica uma multiplicidade de abordagens e heterogeneidade na expressão. Talvez o que esteja acontecendo conosco seja um momento de intensificação da produção, acompanhado de uma ansiedade por resultados singulares em termos de expressão.

É também perceptível nessa intensa produção, ansiosa por colapsar as formas tradicionais da dança, o desejo de refletir declaradamente, na obra, uma posição perante o mundo, os seus ideais políticos. Os produtos de dança ligados ao contexto que tentamos precariamente descrever reportam-se à experiência de ser alguém nos respectivos lugares e tempos onde ser se faz necessário em nosso mundo!

Como em outros momentos de efervescência, os artistas têm se dedicado hoje a trabalhar sobre questões relacionadas ao controle do corpo, às referências da cultura, ao borrar a materialidade do corpo, ao cruzamento entre tradição e contemporaneidade, à concretude do corpo, aos estereótipos do corpo, ao corpo visto como objeto, à precariedade do corpo, ao corpo doente, à memória do corpo, à imagem do corpo, à diferença entre gêneros, ao prazer, ao real e ao virtual, aos estigmas do corpo, à banalização do corpo, à degeneração do corpo, à comunicação, à cultura de massa, à capacidade do corpo em criar realidades sutis, às realidades paralelas, à violência, ao lugar da dança, à relação entre emoção e ação e etc.

Essas questões tão recorrentes no universo poético da arte se materializam com diferença em relação ao modo como elas se materializavam no passado. Essa diferença é relativa às modificações assimiladas na experiência de vida, na ordem de funcionamento das coisas no cotidiano. Se por um lado a agilidade, mobilidade, grandes quantidades e sistematicidade, estetização, têm sido imperativos radicais na contemporaneidade cotidiana, os dispositivos cênicos na dança, por outro lado, tendem a ser radicalmente lentos, básicos, limpos, enxutos. Talvez com a intenção de oporem-se ao movimento geral das coisas. A oposição também parece ter motivado outros momentos históricos de efervescência na produção da dança. A exacerbação da espetacularidade na vida cotidiana provocou uma repulsa à espetacularidade na dança.

Porém nem toda iniciativa artística associada a tal contexto de efervescência logra produzir uma dança intensamente afinada com seus próprios propósitos. Esse contexto, como os passados, se configuram a partir de uma série de tentativas. Umas mais intensamente conectadas com os propósitos gerais do que outras. Umas mais visíveis do que outras. Umas com mais condições para desenvolver-se do que outras. Isto que eu tento descrever como comum, porque de certa forma compartilha interesses, é de fato um conjunto de diferenças.

Se por um lado os artistas da dança associados a esse contexto têm afinidades de interesses, por outro eles partem de contextos e experiências distintas. Experimentação pressupõe uma abertura para o não habitual. É abrir mão do conhecido e se lançar em práticas pouco familiares. Trata-se de um trabalho duro, não somente em relação à elaboração de uma obra em si, mas também em termos do engajamento e transformações pessoais que esse processo envolve.

É muito difícil sair de um processo de criação experimental radical da mesma maneira que se entrou nele. Normalmente eles demandam um empenho e capacidade de distanciamento muito grande para manter o espírito do teste, sem ceder à primeira solução fácil que surge de um hábito. Algumas obras desse comum diferente (conjunto da produção experimental em dança mais recente no Brasil) escolhem até trabalhar sobre a questão dos hábitos, problematizando suas práticas criativas, pois o hábito é uma das questões importantes nesse processo.

É claro que nem todos, nesse contexto, conseguem redimensionar sua própria prática na primeira tentativa de experimentação. Às vezes, o que se alcança é um rascunho destes propósitos que só o tempo e a insistência podem resultar em mudanças efetivas. A diferença também se faz notar no tempo que cada um necessita para unir propósitos às práticas. Os agentes coreógrafos tendo, dessa efervescência, propósitos comuns e diferentes investimentos, condições, contextos e experiências, é natural que um sirva de referência para o outro, provocando, num plano geral, certa recorrência de modos de encenação - o que se revela como contradição para com os propósitos iniciais.

Uma vez mais, se olharmos atentamente para a história dos momentos de efervescência artística, notaremos essa mesma contradição. Parece que existe uma tendência humana a estabilizar o campo de experiência. E a arte, embora tenha como função a elaboração do sensível, muitas vezes pela desestabilização não escapa dessa tendência à estabilização de suas formas. O mercado, as ações críticas e pedagógicas em dança também têm papel atuante nessas contradições. Por exemplo, quando eu generalizo um contexto de diferenças, ressaltando certas características, tendo a criar uma idéia de comum estável onde o que prevalece de fato são as diferenças.

Entre outras coisas, foi essa estabilidade que determinou um esfriamento na ebulição dos contextos produtivos em outros momentos históricos e propiciou o surgimento de novos contextos. Por esta análise estar dedicada a um nível de discrição macro, planos gerais de contextos, que simulam realidades juntando o que é diferente, não consideram estrategicamente os níveis de descrição mais baixos onde se têm sempre diferentes artistas, todo o tempo realizando diferentes projetos, alcançando diferentes resultados com mais ou menos condições de trabalho.

A estabilização de um momento de efervescência aponta para questões também antigas como da reprodução, imitação, cópia, modelo, sistematização das práticas. E essas são questões que também mobilizam os processos criativos nesse atual contexto de efervescência criativa. Estamos em meio a um movimento que me remete a idéia da cobra engolindo o próprio rabo. Parece que questões como originalidade deixaram de ter tanta importância para experimentação em arte, uma vez que o ato criador, ao que tudo indica, parte sempre de uma série de referências anteriores a ele mesmo.

Para nossa experiência, estamos vivendo o momento efervescente pelo qual a produção tem mexido com suas práticas, o que se faz sentir nos resultados criativos e no público numa transformação nos hábitos perceptivos. Mas num contexto histórico maior, estamos apenas dando continuidade a processos históricos dessa linguagem da arte. O difícil é ter a clareza das similitudes e discrepâncias entre gerações passadas e a atual, no grupo da atual geração, no que é compartilhado e no que é singular, nas questões de hoje e as relações com as do passado, no tempo que cada artista precisa pra alcançar um resultado mais contundente.

Difícil é falar sobre algo que não se deixa aprisionar pelas palavras, que foge, escapa, que ao mesmo tempo é singular e plural, atual e antigo, e que se transforma o tempo todo!

Artigo Paulo Paixão
Doutor do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e Professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
http://idanca.net/lang/pt-br/2007/12/06/divagacoes-sobre-um-comum-de-diferencas/5168/

F. M. Alexander e Thoreau – a desobediência de si mesmo




As duas histórias me impressionam muito. Na primeira, um ator que está gradativamente perdendo a voz, é desenganado pelos médicos. Começa então a estudar o seu corpo. Cria uma instalação de espelhos na qual pode se ver de frente e de costas ao mesmo tempo. Passa anos estudando, observando pequenas contrações musculares, detalhes na postura, inclinações mínimas, assimetrias. Assim, desenvolve uma técnica, que não só resolve o seu problema vocal sem a intervenção de médicos especialistas, mas também permite que ele e outras pessoas tenham uma percepção bem mais ampla de seus corpos. Falava de uma certa capacidade de autocura.
A segunda história trata de um homem que vai para a cadeia por não pagar impostos. Não porque não tivesse dinheiro, ou porque pretendesse lucrar com a sonegação, mas porque acreditava quase piamente que não devia nada ao governo, e lhe parecia mais honesto ser forçosamente preso do que se submeter voluntariamente ao interesse do estado. Falava de uma certa capacidade de autogoverno.
Não sei até que ponto essas histórias não carregam alguns exageros heróicos, desses que estamos acostumados a encontrar quando lemos biografias, porque gostamos de alguma mística. Mas é fato que ambas carregam um traço de pensamento comum: a necessidade de exercer o direito à soberania individual.
Ao passo que F. M. Alexander parte de uma percepção sinestésica, Thoreau adota um raciocínio de ordem política, questiona o que é ser indivíduo em sociedade. Mas para ambos o corpo assume o papel de um território absoluto, que pertence a um único dono, o self.
A palavra território sempre me remete à idéia de posse, pois não há território sem dono, mesmo que esse dono não seja humano. E quem é o dono do corpo?
O título do terceiro e mais conhecido livro de Alexander, por si só, já traz indícios bem claros do que a técnica buscava. The use of the self, que em português ficou O uso de si mesmo, não fala de um controle ou uso do corpo, pois equipara o corpo ao self, ou seja, para ele o self é, pode-se dizer, um mecanismo multifuncional autogerido. Eu sou o meu dono, eu faço uso de mim, sou sujeito e objeto do verbo usar. Nessa coisa indefinível chamada eu, há um cérebro, que junto com a caixa craniana pesa mais ou menos uns cinco quilos, que emite impulsos elétricos que mexem a musculatura, que envolve os ossos, e me leva por aí. Assim eu vejo, ouço, respiro, toco e degusto coisas, falo com pessoas, leio e aprendo, me modifico e permaneço me transformando. A técnica busca um uso aprimorado, e acima de tudo mais prático, de si mesmo.
Apesar de parecer tentador, Alexander não ingressa em uma abordagem metafísica – sua pesquisa é sólida e tangível. Funciona bem no dia-a-dia. E de certa forma age sim como uma libertação política, pois quem conhece a técnica não precisa se submeter correndo às indicações de um doutor no assunto quando surge qualquer dor nas costas, por exemplo, pois quem melhor entende do assunto eu sou eu mesmo. E o que a técnica propõe, em termos mais amplos, não é nada além da auto-observação, que foi de onde ela surgiu.
Podemos achar insignificante e até certo ponto leviana essa insubmissão à supremacia médica no que se refere ao conhecimento do corpo, mas estaríamos ignorando a função de baliza que a clínica medica exerce. O hospital é mais um dos lugares de punição, que evita que ultrapassemos determinados limites. E realmente ignoramos esse aspecto, isso porque crescemos em meio a diversos desses locais. Se você não se comporta de acordo com a lei, você vai para o presídio. Se você se comportar de modo muito estranho, vai para o hospício. Se não obedece ao professor, vai para a sala do diretor. Se não se cuida, vai para o hospital. Se desobedece ao patrão, vai para a rua. Fica miserável, louco, rouba, mata e vai para o manicômio judiciário. Comete suicídio, e aí, como é criminoso, louco e suicida, vai para o inferno, ou se for espírita, para o vale dos suicidas. A mera existência ou menção desses lugares mantém a maioria de nós dentro de determinados padrões aceitáveis.
Os dois primeiros, o presídio e o hospício, foram amplamente estudados por Michel Foucault, exatamente sob esse ponto de vista. Ele investigou, como historiador, uma linearidade na construção desses espaços na nossa sociedade, como determinados mecanismos de poder se estabeleceram dentro e a partir deles.
Nos presídios, por exemplo, seriam constituídos parâmetros de distribuição de poder que não estão limitados àquele espaço de confinamento, mas que refletem e são refletidos por toda a nossa estrutura social.
Todavia, para Thoreau, em sua Desobediência civil, não há essa via de mão dupla. O confinamento e a submissão do presídio não são senão conseqüência de uma organização social que privilegia a voz da maioria. E a voz da maioria é mais forte, não por ser mais justa ou mais sábia, mas porque representa maior força física. O corpo da maioria é mais forte que o corpo do indivíduo. O que ele procura é uma maneira de fugir aos valores vigentes, de estabelecer distribuições de poder que permitam ao indivíduo manter suas próprias decisões e juízos, e relegar à maioria as decisões e juízos que a afetem diretamente. É claro que o limite entre o território individual e coletivo é nebuloso, e é ainda mais difícil estabelecer quais escolhas caberiam a cada um deles. Porém, em alguns casos essa diferença aparece nitidamente.
É possível ver hoje, no Brasil, as constantes manifestações pela discriminalização das drogas, pela associação livre entre homossexuais (ou o casamento homossexual, expressão que eu detesto), as recentes modalidades de crimes virtuais, como calúnia e difamação em comunidades do Orkut. Não é suficientemente visível que estamos falando de assuntos que pertencem totalmente ao âmbito individual, exceto por aquilo que toca à moral vigente? Se um indivíduo deliberadamente escolhe fazer algo que não ameaça a integridade física de outros a quem ele deve prestar contas? Por quê? Ainda é preciso convencer a maioria de item por item?
Há pouco tempo, a lei brasileira considerava o suicídio como um crime, no entanto tolerava que um marido matasse a esposa adúltera em defesa da honra. Parecem ser exemplos em que a moral vigente se sobrepõe não só à pretensa justiça – conceito importante para Thoreau, mas que eu considero incongruente, justamente por estar relacionado a moral e hábitos – mas como a qualquer intento de liberdade de escolha individual.
O que Thoreau quer não é um privilégio. Ele simplesmente não admite que um indivíduo possa ser fisicamente coagido a um determinado modo de vida pela força da maioria. E, mesmo no radicalismo de seu discurso, em nenhum momento essa soberania individual se iguala ao individualismo como o entendemos comumente, pois apesar de teísta, ou talvez até por isso, sua luta pelo território individual carrega uma abnegação. É um individualismo pelo coletivo. Assim como Alexander em sua empreitada contra o senso comum do empírico, ao eleger para o governo do território corporal o próprio corpo, Thoreau afrontava a supremacia do regime democrático. Ambos ofereciam em troca uma consciência do indivíduo. E, assim agindo, traziam um pouco mais de liberdade para a coletividade, ou melhor, para cada um de nós. Isso porque suas escolhas nos definiam, criavam novas possibilidades para que cada um pudesse ser também um pouco mais insubmisso, na medida do possível. A vontade de ser um “bom vizinho” era tão grande quanto “a de ser um péssimo súdito”, e assim produziam e difundiam esse conhecimento.
Como no existencialismo sartriano, entenderam que “cada ação do homem define a humanidade”. Porém, ao contrário de Sartre, suas questões não pertenciam ao interesse apenas dos “filósofos e estudiosos”, mas, ao contrário, escapavam de qualquer tipo de discussão não aplicável ao cotidiano. Thoreau chegava mesmo a afirmar que “influir na qualidade do dia (…) é a mais elevada das artes”. Essa busca pela alteração do cotidiano sublinha ainda mais a existência de um interesse coletivo.
Cabe aqui investigar um pouco esse espaço não ultrapassado, questionando que eu é esse que se impõe ao coletivo? Se todo o conhecimento e experiência que temos são provenientes de outros conhecimentos e experiências, o que limita o território individual? Como puderam essas vozes insurgir-se contra a maioria se surgiram exatamente dela? Existiria Thoreau se não fosse em meio ao nacionalismo norte-americano? F. M. Alexander teria desenvolvido sua pesquisa se uma pílula resolvesse seu problema?
É claro que essas hipóteses não podem levar a nenhuma resposta além de “não se sabe”. Pergunta no pretérito imperfeito é sempre especulação e mais nada. Contudo, o “não se sabe”, neste caso, é um grande passo: mostra que esse eu que diariamente toma decisões, afirma-se diante de outros, se orgulha de suas ações e atributos, não sabe onde começa e onde termina.
A solução deste problema para Alexander, ao que parece, seria a pele, o limite físico. Ao confrontar-se com a percepção sensorial comum, em favor do que chama canal sinestésico – uma percepção interna e apurada do corpo – e também um raciocínio – que se ocupa de pesos, medidas, simetria, posições, inclinações – ele afirma que não há corpo separado de mente. Esse conglomerado é capaz de se orientar, espacial, temporal e até moralmente, por conta própria, levando em consideração o que chamo aqui de intuição de si mesmo.
Usei essa expressão para enfatizar a semelhança que vejo entre o canal sinestésico de que fala Alexander e a intuição do “je pense donc je suis” do Descartes. Por caminhos completamente inversos, ambos centralizam o eu na sensação de eu. O donc do Descartes nesse caso tem uma função conectiva que não necessariamente conclui alguma coisa. “Eu penso logo existo” não prescinde que tudo que pensa realmente exista. A sensação penso-existo é uma só. E ele mesmo chama de intuição, que neste caso seria algo que não é raciocínio, não é anímico-transcendental e também não é sensação física (tanto para Descartes como para Alexander os sentidos podem nos enganar). O penso-existo quer dizer que enquanto penso percebo a minha existência.
Contudo, ao contrário de Descartes que não confiaria nunca no tal canal sinestésico (confiaria?) e situa na razão o único ponto de apoio, Alexander reúne penso-existo da mesma forma que reúne corpo-mente. Pensar é pensar mesmo, existir é a sensação física, sinestésica de existir, e tudo funciona junto. Existo, percebo que existo, mudo a minha existência e continuo mudando, percebendo as mudanças. Tem algum problema nisso? Não cabe em Alexander o problema da identidade, pois é facilmente aniquilado pela solidez da percepção sinestésica. A experiência é muito concreta, e qualquer um que participe de uma sessão da técnica percebe. Ele não quer ser um grande pensador, quer pensar-existir e difundir essa experiência, só isso.
Em Thoreau, porém, isso não se resolve tão facilmente. Para ele também o corpo é o limite, mas esse corpo já tem uma dimensão política. É o corpo do indivíduo que enfrenta, indefeso, o corpo da massa esmagadora representada pelo governo. E como entender essa dimensão política sem pensar em cultura, sem pensar em uma formação cultural – e portanto não-individual – do corpo?
O que lhe parece amedrontador é que o estado tenha tanto poder a ponto de poder coagir, confinar, matar, excluir, incluir, mutilar fisicamente. Entretanto, sua relação com o presídio parece estar garantida por sua integridade mental, a separação ainda existe. E existe porque nossa cultura se acostumou a pensar separado, pensamos analiticamente. Separamos corpo de mente, como separamos melão de telefone (coisas separadas por invólucros e funções claramente diversas), mas também como separamos epiderme de mesoderme (coisas unidas, quase indistinguíveis visualmente, e que têm funções semelhantes). Isso se reflete no raciocínio, analítico, de uma época da qual Thoreau faz parte, mesmo que se oponha.
E ele não nega isso, o que se pode perceber em sua política de boa-vizinhança. A coletividade e a autonomia são compatíveis, desde que o indivíduo se saiba coletivo. Passadas algumas décadas da moda existencialista, podemos olhar a uma certa distância essa responsabilidade de nos definir e definir toda a humanidade a cada um de nossos atos, e ver que a tal da angústia não é mais a única possibilidade. A verdade é que o fardo não é tão pesado se aceitamos tornar mais permeáveis os invólucros do eu. A responsabilidade não deixa de existir, mas podemos ter alguma satisfação ao fazer a nossa parte.
O conceito de meme, trazido por Richard Dawkins, coloca as pessoas numa situação bem desconfortável. Quando as idéias ganham autonomia, e mais que isso independência, é o sujeito, e não a coletividade, que fica ameaçado. Se eu não sou responsável pelas minhas próprias idéias, elas não me pertencem, e, além disso, não posso mais me amparar em deuses que determinam o meu destino, o que é que eu faço?
Isso porque definimos nosso território pessoal a partir de nossas atitudes, gostos, preferências, linhas de raciocínio e hábitos. Somos autores e, portanto, donos de tudo isso. Quando nos deparamos com o que agora é óbvio, mas que fizemos passar despercebido por tanto tempo – o fato de que toda informação que nos constrói vem de fora – experimentamos uma grande desolação. Mal assimilamos a “existência anterior à essência” do existencialismo (o homem primeiro existe, e depois é que se entende e se constrói como homem), e aí temos que procurar esse eu que era a base de tudo. A angústia também, a angústia era fácil. Era concreto sofrer por não dar conta de ser tão perfeito quanto se possa imaginar. Mas como eu consigo me angustiar se não acho um eu? É angustiante.
Nos casos de Thoreau e de Alexander, a biografia está ataviada ao discurso: a existência é concomitante com a essência. Eles comunicam o que experimentaram. Mesmo que o primeiro não tenha chegado a conhecer tais conceitos e o segundo não demonstre familiaridade com eles, parecem traçar um caminho bem plausível ao aproximar a percepção da existência e o mundo concreto. Interferir no mundo requer individualidade, requer indivíduos que, conscientes da própria instabilidade, cedam ao movimento das coisas. E, quando se fala de humanos, todo movimento é comunicação. O tempo todo transmitimos nossa existência aos outros, por ações, por discurso, por nascer e morrer. Assim também permanentemente somos modificados pela existência, pelos atos e discursos de outros. Eu sou eu justamente por estar sempre misturado a todo mundo. Assumir a responsabilidade sobre isso, sobre essa intercomunicação constante, é também definir a humanidade. Dessa forma se constroem indivíduos, que constroem novas coletividades. Para cada um, desse jeito, a tarefa deve ficar mais leve. E dá para viver com isso.


Artigo -Gustavo Bitencourt
Ator, diretor de produção, performer, programador, designer gráfico, tradutor, ilustrador, entre outras coisas. Como ator, participou de espetáculos como Dorian Gray, Colônia Penal e Vale das percepções. Ministra oficinas de conscientização vocal/corporal para atores desde 1999. Foi preparador corporal no espetáculo O circo erótico. Dirigiu o espetáculo Hamlet, príncipe da Dinamarca (2005). Foi bolsista do Centro de Estudos do Movimento da Casa Hoffmann, onde também foi co-curador do evento Retrovisor, e do evento Em trânsito, ambos parte do Ciclo de Ações Performáticas.

http://couveflor.wordpress.com/category/artigos/

Philosophy in the flesh : the embodied mind and its challenge to western thought, New YorK Autores:LAKOFF, George, JOHNSON, Mark,




As reflexões que a obra traz, que são classificadas pelos próprios autores como um desafio a filosofia ocidental, partem da estrutura oferecida pela exposição de três idéias principais, a saber: a mente é inerentemente embodied; o pensamento é predominantemente inconsciente; conceitos abstratos são em grande parte metafóricos.

Dizer que a mente é embodied não é simplesmente dizer que é um fenômeno corporal. O corpo, a partir deste entendimento, é mais que o lugar onde a mente ocorre: o corpo e suas capacidades sensoriomotoras estruturam a mente, na medida em que determinam a nossa capacidade de conceituar e a forma em que conceituamos.

Dessa maneira, não se pode falar na razão como uma faculdade autônoma e independente do corpo e suas habilidades de percepção, movimento e emoção. O ser humano pensa e raciocina da forma que o faz porque tem o corpo que tem e por causa das coisas que esse corpo faz.

Os autores chamam de inconsciente cognitivo o conjunto de mecanismos cognitivos acima do nível neural, os quais têm complexidade o suficiente para serem caracterizados como conhecimento ou pensamento, mas aos quais não temos acesso consciente.

Convenciona-se dizer que 95% do pensamento se dá ao nível do inconsciente cognitivo, ou por serem processos cognitivos muito velozes para serem focalizados pela consciência, ou por não ser interessante ou necessário para adaptação eficiente do organismo ao meio que sejam assim focalizados.

A terceira idéia aponta na metáfora a ferramenta intelectual central do corpo. Metáfora não está aqui entendida como figura de linguagem, definida desde os tempos de Aristóteles, como uma maneira de dizer uma coisa por meio de outra coisa, seja por objetivos de poética, retórica ou mesmo de falsear a verdade.

Metáfora aqui aponta para a evidência neural de que conceitos em um domínio de subjetividade estão vinculados e têm sua origem em um outro domínio de experiência sensoriomotora. Os autores demonstram que sem este “recurso”, a maior parte de nossa capacidade de pensamento abstrato não se sustenta.

Se alguns conceitos abstratos ainda podem ser pobremente aludidos sem as metáforas, outros são constitutivamente metafóricos, ou seja, não existem senão com a natureza que têm de metáforas com raízes em domínios cognitivos sensoriomotores. Assim, não valeria a regra aristotélica de dizer uma coisa que poderia ser dita a sua maneira, por outra forma de dizer que seria a “metafórica”.

Ainda, as metáforas não se limitam a ser uma maneira de conceituar num nível mais abstrato que o do sensoriomotor. Elas permitem a transferência de inferências de um domínio para o outro. Os autores apontam que está é a propriedade mais saliente das metáforas conceituais: a preservação das inferências.

O desafio ao pensamento ocidental surge porque, a partir deste quadro, a Verdade é entendida como mediada pelo corpo, e portanto não pode ser alcançada por uma filosofia a priori .

O que entendemos e podemos entender sobre o mundo é condicionado pelos corpos que temos, por nossa habilidade de manipular objetos, pela estrutura de nossos cérebros, pela cultura e nossas interações com ambiente, etc.

Isto não estaria na linha de um relativismo ou subjetivismo radical, na medida em que é apoiado pelos conhecimentos científicos em constante avanço sobre o cérebro, os quais buscam mapear com rigor o seu funcionamento em relação ao ambiente “objetivo” em que o corpo está inserido.

É desta maneira que os autores defendem uma Filosofia Empiricamente Responsável, uma que leve em conta as descobertas empíricas apoiadas pelas mais amplas evidências convergentes sobre a mente e a linguagem.

RESUMO-Hugo Leonardo

Doutorando em Artes Cênicas e Mestre em dança pela Universidade Federal da Bahia. Dançarino do Grupo X de Improvisação em Dança. Coordenador do Projeto EmComTato - Prática e Pesquisa em Contato Improvisação e Performance.