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domingo, 7 de junho de 2009

Divagações sobre um comum de diferenças




No Brasil uma série de fatores distintos tem contribuído para um contexto de efervescência no campo da dança: o surgimento de novos cursos técnicos, de graduação, pós-graduação, residências, a criação de redes de comunicação, de produção e colaboração, o aumento considerável de publicações, o reaparecimento de algumas linhas de subvenção e o redimensionamento de outras, o fortalecimento das mostras em detrimento dos concursos de danças etc. são alguns exemplos de tais fatores.

Não há como negar que o conjunto desses diferentes acontecimentos está promovendo consideráveis deslocamentos nas práticas de criação e em seus respectivos produtos. Nota-se, na criação, uma generalização de processos guiados pela vontade de experimentar e, na cena, produtos coreográficos muitas vezes difíceis de serem reconhecidos como dança.

A prática experimental em dança, bem como noutras linguagens da arte, não é algo novo, de nossa geração. O gesto artístico observado nos vestígios deixados por gerações passadas indica uma multiplicidade de abordagens e heterogeneidade na expressão. Talvez o que esteja acontecendo conosco seja um momento de intensificação da produção, acompanhado de uma ansiedade por resultados singulares em termos de expressão.

É também perceptível nessa intensa produção, ansiosa por colapsar as formas tradicionais da dança, o desejo de refletir declaradamente, na obra, uma posição perante o mundo, os seus ideais políticos. Os produtos de dança ligados ao contexto que tentamos precariamente descrever reportam-se à experiência de ser alguém nos respectivos lugares e tempos onde ser se faz necessário em nosso mundo!

Como em outros momentos de efervescência, os artistas têm se dedicado hoje a trabalhar sobre questões relacionadas ao controle do corpo, às referências da cultura, ao borrar a materialidade do corpo, ao cruzamento entre tradição e contemporaneidade, à concretude do corpo, aos estereótipos do corpo, ao corpo visto como objeto, à precariedade do corpo, ao corpo doente, à memória do corpo, à imagem do corpo, à diferença entre gêneros, ao prazer, ao real e ao virtual, aos estigmas do corpo, à banalização do corpo, à degeneração do corpo, à comunicação, à cultura de massa, à capacidade do corpo em criar realidades sutis, às realidades paralelas, à violência, ao lugar da dança, à relação entre emoção e ação e etc.

Essas questões tão recorrentes no universo poético da arte se materializam com diferença em relação ao modo como elas se materializavam no passado. Essa diferença é relativa às modificações assimiladas na experiência de vida, na ordem de funcionamento das coisas no cotidiano. Se por um lado a agilidade, mobilidade, grandes quantidades e sistematicidade, estetização, têm sido imperativos radicais na contemporaneidade cotidiana, os dispositivos cênicos na dança, por outro lado, tendem a ser radicalmente lentos, básicos, limpos, enxutos. Talvez com a intenção de oporem-se ao movimento geral das coisas. A oposição também parece ter motivado outros momentos históricos de efervescência na produção da dança. A exacerbação da espetacularidade na vida cotidiana provocou uma repulsa à espetacularidade na dança.

Porém nem toda iniciativa artística associada a tal contexto de efervescência logra produzir uma dança intensamente afinada com seus próprios propósitos. Esse contexto, como os passados, se configuram a partir de uma série de tentativas. Umas mais intensamente conectadas com os propósitos gerais do que outras. Umas mais visíveis do que outras. Umas com mais condições para desenvolver-se do que outras. Isto que eu tento descrever como comum, porque de certa forma compartilha interesses, é de fato um conjunto de diferenças.

Se por um lado os artistas da dança associados a esse contexto têm afinidades de interesses, por outro eles partem de contextos e experiências distintas. Experimentação pressupõe uma abertura para o não habitual. É abrir mão do conhecido e se lançar em práticas pouco familiares. Trata-se de um trabalho duro, não somente em relação à elaboração de uma obra em si, mas também em termos do engajamento e transformações pessoais que esse processo envolve.

É muito difícil sair de um processo de criação experimental radical da mesma maneira que se entrou nele. Normalmente eles demandam um empenho e capacidade de distanciamento muito grande para manter o espírito do teste, sem ceder à primeira solução fácil que surge de um hábito. Algumas obras desse comum diferente (conjunto da produção experimental em dança mais recente no Brasil) escolhem até trabalhar sobre a questão dos hábitos, problematizando suas práticas criativas, pois o hábito é uma das questões importantes nesse processo.

É claro que nem todos, nesse contexto, conseguem redimensionar sua própria prática na primeira tentativa de experimentação. Às vezes, o que se alcança é um rascunho destes propósitos que só o tempo e a insistência podem resultar em mudanças efetivas. A diferença também se faz notar no tempo que cada um necessita para unir propósitos às práticas. Os agentes coreógrafos tendo, dessa efervescência, propósitos comuns e diferentes investimentos, condições, contextos e experiências, é natural que um sirva de referência para o outro, provocando, num plano geral, certa recorrência de modos de encenação - o que se revela como contradição para com os propósitos iniciais.

Uma vez mais, se olharmos atentamente para a história dos momentos de efervescência artística, notaremos essa mesma contradição. Parece que existe uma tendência humana a estabilizar o campo de experiência. E a arte, embora tenha como função a elaboração do sensível, muitas vezes pela desestabilização não escapa dessa tendência à estabilização de suas formas. O mercado, as ações críticas e pedagógicas em dança também têm papel atuante nessas contradições. Por exemplo, quando eu generalizo um contexto de diferenças, ressaltando certas características, tendo a criar uma idéia de comum estável onde o que prevalece de fato são as diferenças.

Entre outras coisas, foi essa estabilidade que determinou um esfriamento na ebulição dos contextos produtivos em outros momentos históricos e propiciou o surgimento de novos contextos. Por esta análise estar dedicada a um nível de discrição macro, planos gerais de contextos, que simulam realidades juntando o que é diferente, não consideram estrategicamente os níveis de descrição mais baixos onde se têm sempre diferentes artistas, todo o tempo realizando diferentes projetos, alcançando diferentes resultados com mais ou menos condições de trabalho.

A estabilização de um momento de efervescência aponta para questões também antigas como da reprodução, imitação, cópia, modelo, sistematização das práticas. E essas são questões que também mobilizam os processos criativos nesse atual contexto de efervescência criativa. Estamos em meio a um movimento que me remete a idéia da cobra engolindo o próprio rabo. Parece que questões como originalidade deixaram de ter tanta importância para experimentação em arte, uma vez que o ato criador, ao que tudo indica, parte sempre de uma série de referências anteriores a ele mesmo.

Para nossa experiência, estamos vivendo o momento efervescente pelo qual a produção tem mexido com suas práticas, o que se faz sentir nos resultados criativos e no público numa transformação nos hábitos perceptivos. Mas num contexto histórico maior, estamos apenas dando continuidade a processos históricos dessa linguagem da arte. O difícil é ter a clareza das similitudes e discrepâncias entre gerações passadas e a atual, no grupo da atual geração, no que é compartilhado e no que é singular, nas questões de hoje e as relações com as do passado, no tempo que cada artista precisa pra alcançar um resultado mais contundente.

Difícil é falar sobre algo que não se deixa aprisionar pelas palavras, que foge, escapa, que ao mesmo tempo é singular e plural, atual e antigo, e que se transforma o tempo todo!

Artigo Paulo Paixão
Doutor do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e Professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
http://idanca.net/lang/pt-br/2007/12/06/divagacoes-sobre-um-comum-de-diferencas/5168/

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