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sábado, 3 de outubro de 2009

Interseções entre gestos e olhares























Ivani Santana tem 42 anos. Nasceu em São Paulo e mora há seis em Salvador.

Armando Menicacci tem 44. Nasceu na Itália e mora desde 1994 em Paris.

Ivani Santana começou dançando balé, aos oito anos, “como toda menina”.

Armando Menicacci calçou as sapatilhas pela primeira vez com a mesma idade, como quase nenhum menino.

Ivani Santana sempre almejou o além-dança. Nos palcos, trabalha há um bom tempo em busca de novas maneiras de fazer arte. Seu corpo vive à caça de outras estratégias poéticas. Hoje transita entre criação, pesquisa e ensino.

Armando Menicacci nunca quis ser bailarino. Deixou a dança na adolescência e partiu para a música. Aprendeu piano, mas foi estudar musicologia. Voltou a encontrar a dança aos 29 anos, numa perspectiva mais teórica. Hoje transita entre criação, pesquisa e ensino.

Ivani e Armando são amigos e desenvolvem em paralelo trabalhos com interesse interdisciplinar entre dança e tecnologia. Muito mais do que carreiras parecidas, compartilham uma forma particular de encarar o mundo – incluindo o fazer-arte. Se há algum rótulo para eles, é a noção de contemporaneidade levada a cabo. Não se contentam com a “verdade”; buscam o avesso. Não separam criação de experiência; corpo de mente; arte de técnica. Rejeitam o esquema de dualidades cartesiano. “Tecnologia = computador” é uma equação datada. Cultura digital vem muito antes da internet. Acreditam no potencial das máquinas, desde que não sejam meros “enfeites” utilitários – ou cenografias gratuitas. Para ambos, explorar o potencial de aparatos tecnológicos de ponta se figura como mais uma das maneiras de que o ser humano dispõe para trabalhar com novas possibilidades de recriar e conceber o real.

De uma forma geral, e por vias distintas, tanto um quanto o outro defende a ideia de que a relação entre dança e tecnologia não quer dizer a soma de corpo e câmera, simplesmente. Significa promover um encontro dentro de um ambiente próprio, ou se preferirmos, totalmente novo de pensamento – não necessariamente tomado por computadores e webcams. Se apropriar desse terreno é o caminho que escolheram para redescobrir o corpo, romper os limites do gesto e criar novos atalhos no percurso poético.

Essas e outras questões se mostraram bem evidentes entre eles na primeira edição do Seminário Interseções – Corpo e Olhar, realizado no Recife, entre os dias 24 e 26 de setembro (leia mais aqui). Menicacci abriu o evento com a palestra O olhar no calcanhar: sobre a especificidade do olhar coreográfico da imagem. Ivani encerrou o projeto, com as falas Dança imagem: provocações estéticas das apropriações no corpo e na tela, e Mapa D2. Entre ambos, uma programação extensa de seminários, debates, palestras e projeções de vídeo movimentou a iniciativa, cujo propósito foi promover uma discussão sobre a dança para além de suas especificidades. Dentro do amplo leque sugerido de interseção entre corpo e olhar, que pode ser entendido como dança e cinema, ou dança e imagem (ou muito mais), cerca de 40 pesquisadores e criadores apresentaram seus estudos e perspectivas teóricas.

Interessados nessas relações, pode-se dizer que Menicacci e Ivani também foram um ponto de diálogo na diversidade de entrecortes sugerida pelo evento – uma realização, com proposta bianual, do Acervo Recordança/Asssociação Reviva, da Fundação Joaquim Nabuco e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A partir deles, e da proposta do seminário em aproximar de alguma forma os seus discursos, foi possível mergulhar mais fundo nesse universo onde o corpo não é apenas uma dimensão orgânica.

Confira a seguir uma síntese de depoimentos e reflexões gentilmente concedidos por cada um deles em suas palestras e entrevistas ao idança.

“Estamos reinventando e redescobrindo o corpo”

Ivani Santana / Foto: Duda Freyre

Ivani Santana / Foto: Duda Freyre

Quando tinha 20 e poucos anos, e quase nada sabia sobre computadores, cibernética ou motion capture (captação do movimento), a paulista Ivani Santana resolveu colocar em cena um retroprojetor de sala de aula para interagir com bailarinas. Uma delas se incumbia de levar o aparato na mão e, na medida em que riscava sobre a transparência, imagens-gestos se projetavam sobre as demais intérpretes, que reagiam a cada impulso. Hoje, passadas mais de duas décadas, Ivani e o grupo de pesquisa do qual faz parte (Grupo de Trabalho em Mídias Digitais e Arte) se preparam para colocar em rede um ousado projeto de dança telemática, que vai acontecer em três cidades simultaneamente, com transmissão e conexão via internet.

Apesar de muito mais complexo e experimental que sua empreitada de juventude, Ivani não vê diferença entre este novo trabalho, intitulado e-pormundos afetos, e as investidas do início de carreira. Para ela, ambas as obras carregam em si o tripé que está no cerne de suas invenções: interação, imersão e tempo real. “Intuitivamente sempre tive essa coisa de trabalhar com conhecimentos novos, fossem quais fossem; de trabalhar com a dança sempre num sentido de estar repetindo o que está acontecendo na realidade vigente, daquele momento. Então, em cada época eu criei com as realidades que estavam à minha porta”, conta a artista, também pesquisadora e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Na visão de Ivani, tecnologia é algo inerente ao fazer artístico; ambos são inseparáveis, tal qual coração e organismo. Mestre e doutora pelo Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/São Paulo, ela enxerga essa relação como algo condicional na arte, e uma questão de mediação, não de “cola”. “Às vezes, as pessoas colocam dança e tecnologia como se fossem duas coisas que se juntam, como se fosse A + B e você pudesse falar: ‘Até aqui é A e até aqui é B’. E não existe essa possibilidade, mesmo na videodança”, afirma. “Onde está o elemento videográfico separado do elemento dança? Você não tem como falar isso. Aquele corpo está gravado daquele jeito, dançando naquele ângulo e daquela maneira a partir do momento em que você juntou as duas linguagens. O bailarino não estaria agindo de uma determinada forma e a câmera também não, mesmo se ela estiver num plano fixo. As duas coisas estão unificadas, não é uma dança utilitária, que eu coloco e tiro”, pontua.

Para ela, o grande interesse do artista deve estar na ideia, mas esta não se realiza se não dispuser de meios para tal. E nesse sentido, usar pincel é igual lançar mão da internet, ou o mesmo de um sensor acoplado ao corpo. O fascínio de Ivani por novas tecnologias se dá justamente nesse sentido. Se valer do uso da imagem na dança ou colocar o corpo em rede são exercícios que caminham na direção de novas possibilidades de arte e, portanto, de percepção de mundo. “A grande questão é que estamos reinventando e redescobrindo novas formas de o corpo se organizar”, defende.

Na concepção de Ivani Santana, utilizar a web como mídia é aproveitar um potencial, se apropriar de um pensamento particular que, para ela, tem muito a oferecer ao campo da arte. “Só fico às vezes com dó das pessoas que tentam ver na internet uma maneira de recriar um mundo como esse daqui, como no palco italiano. E alguns projetos artísticos ficam tentando se esforçar para que esse ambiente seja igualzinho ao de lá. Mas jamais vai ser”.

“Vejo nos bailarinos uma nova consciência do corpo graças a esses novos recursos”

Armando Menicacci podia ter nascido no Brasil. Assim não passaria pelo constrangimento de querer usar vários “chapéus”, como diz. Durante muito tempo, ele se viu em crise. Na Europa, onde nasceu e vive, as pessoas têm dificuldade para entender que alguém possa querer ser, ao mesmo tempo, pesquisador, professor e artista. Que mal há nisso? Entre os brasileiros, é algo absolutamente normal, até porque é raro ver alguém conseguir sobreviver atuando exclusivamente em uma dessas funções. Mas no “Velho Mundo” é diferente. Não existe muito essa história de prática e teoria serem faces da mesma moeda. São separadas mesmo, e por via institucional declarada.

Menicacci, contudo, nunca se conformou muito com esse tipo de organização social. E hoje enxerga como foco de vida aquilo que muitos ao seu redor percebem como paradoxo. “Aos poucos me dei conta que essa não é uma ambigüidade, não é um conflito, é um projeto. Um projeto de fazer uma outra circulação entre campos que normalmente não são reconhecidos como juntos. Quer dizer, ou você é uma coisa, ou é outra coisa. Mas é o outro que não quer ver a tua complexidade, o outro quer simplificar você. Você tem que ter um chapéu só”, afirma.

Armando Menicacci / Foto: Duda Freyre

Armando Menicacci / Foto: Duda Freyre

Hoje, este que já assume sem culpas sua identidade múltipla roda o mundo dando palestras, ao mesmo tempo em que mantém na França as atividades do laboratório Médiadanse, voltado a trabalhos de pesquisa, criação e pedagogia em dança e tecnologia. O espaço é ligado à Universidade de Paris 8, onde concluiu seu doutorado. Além de publicar livros e artigos nessa seara intermediada por diferentes campos de conhecimento, desenvolve ainda projetos artísticos no Digitalflesh, “um laboratório de pesquisas plásticas, musicais, cênicas e tecnológicas em torno do espetáculo vivo”, que ajudou a fundar com Christian Delecluse. Divide o tempo colaborando com coreógrafos como Alain Buffard, Rachid Ouramdame, Vincent Dupont e Helder Vasconcelos, e cuidando de suas próprias criações, que define como “instalações interativas”. São exemplos dessas concepções artísticas o Dans le noir e a criação coreográfica improvisada Under-score (foto), que já circularam por diferentes cidades e países, incluindo o Brasil.

Com essa vasta experiência, para ele é inconcebível que alguém ainda questione: “Como é possível unir dança e tecnologia, corpo e máquina?”. Menicacci sempre rebate: “Como não é possível? Chega dessa pergunta. Ela esconde um pensamento que tem medo da substituição do corpo pela máquina. E esse medo é muito velho. Essa substituição não aconteceu”. Segundo ele, essa resistência, e até de uma certa ignorância sobretudo entre os profissionais da dança, ganha reforço ainda porque alguns pensadores “ciberpessimistas”, como Jean Bradrillard e outros, afirmaram que a tecnologia nos afasta do corpo.

“Acontece o contrário. Na minha prática de análise dos movimentos, através dos recursos informáticos, do motion caption e da interação com o vídeo em tempo real, vejo nos bailarinos uma nova consciência do corpo graças a esses novos recursos, e não apesar deles; graças a esses novos ambientes da ação e do pensamento”, defende Menicacci, que se vê como “cibercrítico” – nem “ciberentusiasta” cego, nem pessimista incondicional.

O professor-criador-pesquisador entende e respeita que os bailarinos ou coreógrafos possam não gostar das novas tecnologias, e até admite que a dança nem sequer precise delas. Mas se incomoda com a reação sem argumento, em defesa da “pureza” do corpo sem nenhum debate embasado. “Arte e técnica foram sempre ligadas. A técnica sempre chegou para exprimir alguma coisa. E sempre os artistas usaram os últimos recursos, as mais novas tecnologias de sua época. Chegou o gás no teatro e a luz mudou, porque até o começo do século 19 havia a mesma iluminação na sala e no palco, e você não podia mexer com a luz, porque era só vela. A própria duração dos atos, das peças de Molière, por exemplo, era ligada ao tamanho das velas, e ele tinha que trocá-las… Então, técnica, arte, estilo, ritmo da montagem e da escrita estão ligadas”, analisa.

Concebendo a informática não como uma ferramenta, mas como uma tecnologia que muda a nossa forma de atuar no mundo, e de percebê-lo, ele diz que os bailarinos podem demorar anos, assim como fizeram com a sapatilha de ponta, para terem domínio desse universo. É normal. E afirma que espetáculos “ruins” não são um problema da tecnologia, mas do artista. “O importante é fazer poesia. Com qualquer coisa. Qualquer que seja o ambiente de seu pensamento”, reforça. “Tem danças que se organizam ao redor de um desejo de virtuosismo vazio, só pela performance, só pela diversão. E eu penso que diversão é o contrário de arte. Divertire em latim significa desviar. Desviar de quê? Da política, de uma ação pertinente do mundo que está caindo ao redor da gente. A diversão leva você para casa idêntico, igual. A arte muda você, tem que mudar você de algum jeito. Tem que construir. Uma obra de arte é um projeto de um outro mundo possível. Não é um objeto, uma coisa. É uma visão”.


Autora do Texto:Olívia Mindêlo é graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), onde estuda atualmente como mestranda do Programa de Pós-Gradução em Sociologia (PPGS). Atuou como repórter do Caderno C – Jornal do Commercio (JC), para o qual escreveu matérias de artes e cultura entre 2004 e 2009. No início deste ano, foi contemplada com o Prêmio Mário Pedrosa – Museus, Memória e Mídia, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pela série de reportagem Museu de Todos. Colabora periodicamente com a Revista Continente e outros veículos.

Um comentário:

  1. Olá Iara, vi que você visitou a foto que fiz do seu trabalho. Se você puder entre em contato comigo pra eu te enviar a foto por imeio e obrigada por ter me autorizado fazera a foto. Imeio: correa.ines@gmail.com
    Abraço, Ines

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