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sábado, 24 de outubro de 2009

Estrangeiro do Piauí




“Tenho 206 ossos, 639 músculos, uma cabeça, dois olhos que piscam 25 mil vezes por dia. Tenho uma língua que é o órgão mais potente do meu corpo. Tenho um coração que bate três mil vezes por dia, dois rins que valem uma fortuna, 96.500 quilômetros de veias e artérias, dois pés que podem me levar a qualquer lugar, 50 milhões de células, 100 bilhões de neurônios, mas o meu boi morreu, o que será de mim?” Com essas palavras, Marcelo Evelin inicia no palco uma invocação ritualística que dará forma a um boi contemporâneo, resistente e transformado pela passagem dos anos. Manifestação originalmente do Piauí e mais tarde abraçada pelo Maranhão, o boi é o mote para as questões levantadas em Bull Dancing – Urro de ómi boi (fotos), uma co-produção Brasil-Holanda, estreada em 2006.

Criador da Cia. Demolition Inc, em Amsterdã, o coreógrafo de 41 anos, nascido em Teresina, no Piauí, engrena aos poucos uma volta à sua cidade natal. Lá dirige o Núcleo do Dirceu, espaço formado por coletivos de artistas vindos da dança, da música, do teatro e do hip-hop. Toda quarta-feira desde janeiro de 2006 acontece um espetáculo improvisado no Projeto Instantâneo, além da Mostra do Dirceu. Embora exista há somente três anos, o espaço promete ser um divisor de águas ao sugerir uma nova forma de pensar a dança. Quem não conhece ficará surpreso em descobrir esse terreno fértil no Dirceu, bairro distante da periferia de Teresina. Em 2008, Evelin marcou presença também com Mono, sua mais recente e inovadora produção, que teve estreia em Amsterdã e São Paulo. Em novembro, assinou ao lado de Adriana Grechi a direção artística da primeira edição do Festival Contemporâneo de Dança, que reuniu artistas de diversos países na Galeria Olido, em São Paulo. A terceira parte da trilogia iniciada em 2004 com Sertão e mais tarde com Bull Dancing, deverá chegar aos palcos até 2010 e abordará a brasilidade em outras culturas.

Vamos começar pela mais difícil. Para você, o que é um espetáculo de dança?

Acho que um espetáculo de dança é a colocação do corpo nesse cruzamento de idéias, ações e pensamentos gerados no corpo. É a organização dessa influência do pensamento do próprio corpo dentro de um tempo e de um espaço bastante específicos. Uma linguagem não tão conhecida, mas extremamente potente no sentido de realmente revelar e de dizer coisas.

Você nasceu em Teresina, no Piauí. Imaginava que viveria de dança?

Nunca. Apesar de ter passado a minha infância no Rio de Janeiro, vi a primeira aula de balé aos 14 anos, já de volta à Teresina. Nessa época, só existia balé e eu achava que a dança era só isso. Tive a sensação de que eu jamais poderia me encaixar naquela estrutura. O que eu mais gostava era dos ‘port des bras’. O movimento dos braços sempre me impressionou. Cheguei até a pensar que um dia eu pudesse fazer uma dança só de braços [risos]. Só fui conhecer a dança contemporânea mais tarde, quando voltei para o Rio de Janeiro, aos 17 anos. Tive a sorte de começar com o Klauss e a Angel Vianna, que me direcionaram com relação à conscientização do meu próprio corpo e à dimensão do que pode a dança como linguagem. Em 1980, as idéias do Klauss a respeito do que seriam os espetáculos do futuro foram muito importantes para mim. Tive aulas também com a Graciela Figueiroa, do Grupo Coringa, recém chegada de Nova York. Uma pessoa que trazia uma bagagem dos norte-americanos dos anos 70 e que também abria um espaço para a compreensão do movimento. Isso foi muito importante já no início. Comecei direcionando o meu trabalho corporal, a minha construção física, com uma idéia muito precisa de linguagem de espetáculo.

Você foi para a Europa aos 24 anos. Porque decidiu partir e como foi essa experiência?

Eu sempre pensei em sair, sempre quis viajar e estudar em outros lugares. E a gente recebe muita informação vinda da Europa com relação à dança, principalmente a dança contemporânea. Em 1980, eu vi a Pina Bausch pela primeira vez no Brasil. Eu fiquei muito impressionado com aquele trabalho porque realmente misturava dança com o teatro numa época em que não se falava em dança-teatro no Brasil. Vi Café Müller, Kontakthof e Sagração da Primavera duas vezes cada de tanto que gostei do trabalho. Acho que a Pina Bausch foi a minha ignição para essa viagem. Com essa referência comecei a pensar mais na Europa. Em 1995, ganhei um prêmio pela minha primeira coreografia em São Paulo, um musical infantil, Chama Amazônica, um trabalho muito intuitivo, sem nenhuma técnica de coreografia. Eu não tinha a idéia de ser coreógrafo, mas o trabalho foi muito elogiado e analisado com conceitos que eu não conhecia. Nesse momento resolvi sair porque achei que precisava ter um embasamento técnico maior para o que eu estava fazendo. Em Paris, entrei numa escola que tinha um programa bem livre de dança contemporânea, o Studio Ménagerie de Verre. Lá consegui me situar com relação às possibilidades da dança contemporânea, de um trabalho mais autoral – conceitos menos explorados no Brasil nessa época. Conheci um bailarino que dançava com a Pina há dez anos e que estava montando a companhia dele em Amsterdã. Ele me chamou para fazer parte do grupo a princípio por seis meses e fui ficando. Em seguida, fui para Wupperthal e conheci a Pina Bausch. A primeira coisa que fiz foi pedir para ficar na companhia – puxando pela ponta do casaco, que nem menino [risos]. Ela me deu a possibilidade de ser estagiário da companhia por um tempo e no fim das contas passei nove meses em Wupperthal. Foi muito bom, muito importante para mim.

O que você aprendeu com ela?

Aprendi uma certa simplicidade, uma certa verdade no trabalho. A Pina realmente tem essa coisa que já virou um clichê no trabalho dela: “não estou interessada em como as pessoas se movem, mas no que move as pessoas”. E isso é uma coisa que é realmente levada às últimas conseqüências dentro do trabalho. Ela tem essa atenção com o que está sendo produzido pelos bailarinos, de buscar uma pessoalidade, um cantinho que a pessoa não foi ainda, além de todo um método de trabalho de formulação de questões a partir do qual se improvisa. Essa pessoalidade até hoje é muito importante para mim.

Qual a principal marca do seu trabalho?

Passei por fases. Já fui muito influenciado por literatura, poesia e romance. E também sempre tive uma relação com a cultura brasileira, mais esporadicamente no início e nesses dois últimos espetáculos – Sertão e Bull Dancing -, mais diretamente. Sempre quis me relacionar com o Brasil através do meu trabalho e sempre achei muito difícil fazê-lo sem cair no bairrismo, numa coisa de vender o Brasil como um lugar exótico, esse sol, essas palmeiras e os sabiás. Acho que minha situação de estrangeiro também trouxe muitos novos elementos. Estar deslocado – tanto na Holanda, quanto no meu próprio país – é um estado que tenho usado sempre.


O que precisa ser mais visto na cultura popular?

A cultura popular tem uma força muito grande por sobreviver a esse mundo contemporâneo. É muito interessante ver pessoas ainda hoje dançando boi – pessoas que acessam internet, fazem ultra-sonografia e andam de avião. Esse fator resistência que tem atravessado décadas ou mesmo séculos – no caso do boi são dois séculos -, sempre me intriga. O que é que tem aí que se mantém por tanto tempo, embora transformado, com upgrade? Não tenho nenhuma relação com a cultura popular no sentido de defendê-la. Inclusive, eu não gosto da idéia de tratar a cultura popular como alguma coisa à parte, que tem que ser defendida. Essa coisa imaculada com ela. Mas ao mesmo tempo tenho respeito por uma cultura que se mantém e que foi feita não por um pensamento estrategista, mas que surgiu de uma relação do ser humano com o próprio meio. Eu não saberia dizer o que precisa ser mostrado, mas o que eu tenho trabalhado são pontos ainda discutíveis hoje. Com a pesquisa para o Bull Dancing descobri questões que o próprio auto do boi traz, como a violência, a desigualdade social, a descriminação, a “patente” do boi e a posição da mulher na sociedade – há menos de 110 anos a mulher não podia virar boi – a figura da Catirina era feita apenas por homens. Tenho também uma enorme atração pela música do boi, a simplicidade e a força da batida, mais arcaica, primitiva, que para mim se assemelha aos novos beats. E pela dança, simples como configuração espacial, mas muito específica em relação ao que considero a dança brasileira a nível de organização do corpo.
Como você vê a atual produção brasileira de dança?

De forma muito otimista. Somos um povo mais expressivo e expansivo corporalmente e a facilidade com uma linguagem de dança já começa daí. A dança do Brasil está começando realmente a se verticalizar. As pessoas estão estudando muito, lendo, escrevendo, usando outras linguagens ou até mesmo a ciência para conceituar seus trabalhos. Existe um bom desenvolvimento na parte de festivais, de encontros e mostras, trocas e diálogos – o idança, por exemplo, não existe na Holanda! Lá existe muito menos espaço para diálogo do que aqui. Fico realmente impressionado com o fato da dança brasileira estar encontrando relação com outras áreas. Acho que ela está num momento muito interessante. Tenho uma confiança de que vamos conseguir fazer muita coisa nos próximos dez anos porque o mercado europeu está começando a se saturar. Sinto que a dança no Brasil está começando a se juntar às questões do indivíduo na sociedade de uma forma muito contundente e precisa. Pode ser que as pessoas achem que seja um otimismo de quem vem de fora, mas não é. Só gostaria que as políticas culturais fossem mais amplas e democráticas e tivessem maior continuidade. O problema do Brasil é que as pessoas se detêm muito na idéia de celebridade. Parece que precisam ser celebridades antes de realmente processarem suas questões no trabalho.

O que é o Núcleo do Dirceu?

Em 2005, fui convidado pela prefeitura de Teresina a assumir um teatro escola na periferia, que hoje passou a ser chamado Teatro Municipal de Teresina João Paulo II. Na época, propus a criação de uma plataforma de geração e troca de informação menos hierarquizada, onde se investisse em novos criadores para, a longo prazo, começar a forçar o mercado de arte numa cidade pequena, árida e isolada como Teresina. Dois meses depois de ter assumido o teatro, consegui da prefeitura bolsas para manter um grupo de 18 artistas com experiências e idades diversas para estarem no teatro 20 horas por semana num projeto de formação. Eles tiveram aulas comigo e entraram em contato com artistas estrangeiros em workshops, palestras e espetáculos. Ficamos dois anos nesse trabalho de formação e tivemos a sorte de ter bons profissionais passando por lá ensinando desde técnica Limón, até teatro físico, vídeodança, produção, elaboração de release e yoga, um pouco de tudo. Essa formação acaba em fevereiro deste ano e a forma de mantê-los ativos foi através da criação de um coletivo, estrutura que vem sendo muito falada no Brasil. O núcleo transmite a informação ao centro de criação, que atende quase 350 pessoas da comunidade, entre crianças, adolescentes e terceira idade. Agora estamos tentando esgarçar o mercado de trabalho em Teresina para a arte contemporânea, que é uma linguagem completamente nova. Acredito muito na comunicação que pode ser gerada na diversidade, muito mais do que na idéia de homogeneidade. Acho que precisamos desse confronto para ir mais fundo no que a gente faz. Não consigo ver dança sendo feita hoje em dia que não seja baseada justamente nesses contrastes. A única coisa que temos como foco principal é o corpo. Ele continua sendo um ponto central, de onde diverge muita coisa. Estamos começando a entrar por debaixo da porta feito fumaça. Não vejo o que nós estamos fazendo como um divisor de águas. O processo de contaminação no mundo é totalmente presente hoje em dia.

Como é estar fora do eixo Rio-São Paulo?

A idéia de trabalhar numa periferia no Brasil foi o que me instigou. Sempre penso em periferia como esse aglomerado de fora que possui uma potencialidade muito grande. Penso geralmente como a pele, que é o lugar por onde a gente respira, por onde a informação entra. Foi absolutamente tentador propor um trabalho de arte contemporânea num lugar assim.

O que ainda quer realizar como artista
?

Quero trabalhar até o final. Quero chegar mais próximo da idéia de arte como ignição para as questões discutidas na sociedade. Gostaria cada vez mais de trocar com outras culturas e de viajar. Existem alguns lugares do mundo que ainda não conheço. Quero ir para o Japão. Estou estudando o kabuki e o butô porque sinto que existe uma relação desse arcaico japonês com o arcaico brasileiro. Estou começando a trabalhar na trilogia também. Sinto que não é o momento de entrar de novo no folclore. Posso dizer que a terceira parte tem muito mais a ver com o Brasil deslocado, visto por outros olhos. Quero discutir o elemento de brasilidade em outras culturas. Como a nossa cultura sobrevive, interage ou se manifesta em outros povos, situações geográficas, políticas, culturais e sociais. Não posso falar muito ainda, mas deve estrear entre 2009 e 2010.

Deborah Rocha é jornalista e dançarina de Dança Clássica Odissi.


FONTE:http://idanca.net/lang/pt-br/2009/01/08/estrangeiro-do-piaui/9642/

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