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sábado, 25 de julho de 2009

CORPOS ENTRE MARGENS POR HELENA BASTOS












A idéia deste texto partiu de um tempo de convivência com o Núcleo de Criação do Dirceu, periferia de Teresina, Piauí, em fevereiro de 2008. O grupo Musicanoar foi convidado a se apresentar com o espetáculo de dança Vapor no projeto lançado pelo Núcleo de Criação do Dirceu denominado Mapas do Corpo (leia aqui notícia sobre a 3ª edição do evento).

Sabemos que qualquer construção bem realizada depende de parcerias e condições as quais propiciam possibilidades mais concretas de realizações com um devido sucesso. No caso do Musicanoar, eu - Helena Bastos - e Raul Rachou tínhamos a disponibilidade da diretora de Vapor que nos acompanhou: Vera Sala. Da parte do Núcleo de Criação do Dirceu contávamos com a coordenação de Marcelo Evelin (coreógrafo/criador/intérprete) neste projeto, a produção de Regina Velloso e Klayton Amorim e o diretor administrativo Francisco de Castro. Neste circuito houve também a mão do Itaú Cultural - Rumos Dança2006/2007, que administrou nosso cachê, nossas idas e vindas tendo sempre a presença da gestora de projetos de dança Sônia Sobral.

Quando mapeamos estas relações é por querer chamar atenção que qualquer pensamento, para existir, necessita de visibilidade que estará sempre vinculada a uma temporalidade no ambiente e co-dependente do modo como as relações se articulam num determinado espaço focado e disponível em direções que fomentem o fazer criativo. Em Teresina, era falar de dança, criação, dramaturgia, contemporaneidade em dança, enfim, pretendia-se deste encontro uma reflexão conjunta em que artistas, professores e iniciantes ligados à pesquisa de linguagem cênica movessem suas ações e conseguissem expandir modos de pensar organização no corpo que dança.

Arte no projeto Dirceu passa pelo entendimento de outras formas de conhecimento. Todo conhecimento é uma forma de educação vital. Vale ressaltar a pertinência deste encontro com o Musicanoar. Apesar de morarmos em cidades distantes entre si, como São Paulo e Teresina, parte do que alimentou nosso encontro foi a percepção de haver uma proximidade por questões conceituais inseridas nas nossas investigações contemporâneas.

Nestes 16 anos de trabalho, o Musicanoar ampliou o entendimento sobre composição e coreografia no ambiente contemporâneo. Hoje, o perfil deste artista na relação com uma obra coreográfica exige uma intervenção diferente tanto no momento da construção, produção e execução do espetáculo.

O Musicanoar apresenta um perfil que lida com uma conduta investigativa, em que determinados padrões de movimentos se formalizam, a partir do modo como construo o espaço deste ambiente num passo a passo. É um modo de construção que, para aquele que está envolvido no ambiente enquanto intérprete-criador, é muito difícil. Em conversas, durante ou depois de uma coreografia ser concluída, muitos destes intérpretes desabafavam comigo ou com outros que uma das maiores dificuldades era a da sensação de se mover num ambiente escuro e desconhecido - eles tinham dificuldades de nomear este “dançar”, perdiam referência sobre o chão desta dança. O encadeamento desta fala era recebido com estranhamentos e conseqüentemente geravam preocupações como aonde tudo isso iria levá-los?

Esta maneira de construção exige uma disponibilidade imensa. O chão inicial é a idéia da pesquisa coreográfica que surge com um padrão de movimento. A partir deste passo, inicia-se um processo em rede - a idéia se amplia, o padrão inicial de movimento vai se tornando mais preciso no espaço, desenhos espaciais em deslocamento vão surgindo nestas conversas e um ambiente musical vai-se configurando. A coreografia anda para frente, apesar de sensações que lidam com perdas, ganhos, avanços e retrocessos. Estes parceiros, intérpretes-criadores, marcaram o Musicanoar com atos de imensa generosidade no propósito de criar outros mundos, cheios de significados, num ambiente onde a princípio nada está configurado.

Desde 1993, Raul Rachou pôs os pés no Musicanoar e, aos poucos, suas longas pernas contaminaram o meu caminhar com o Musicanoar. Ele é o meu grande companheiro de cena. Sem premeditação, simplesmente uma construção mútua, contínua, de uma imensa caminhada. Apesar de Raul, na sua trajetória de vida, ter passado por várias aulas e cursos de dança, é a partir de 1990 que se lança com uma dedicação mais profunda e sistematizada na sua formação corporal.

Em 1999, decidi que o próximo trabalho seria com a participação de poucos intérpretes. Esta escolha surgiu a partir da minha necessidade em averiguar mais profundamente o corpo, o que acontece quando provocamos criação de outros padrões de movimentos e o que esta relação provoca no contexto do ambiente. Neste momento, poderia ter escolhido a direção de um solo coreográfico, porém, gosto de compartilhar a cena com alguém. Neste caso, perguntei ao Raul se ele concordava que a próxima aventura fosse somente entre eu e ele. Juntos, decidimos ir além, mais fundo na busca de outros entendimentos de corpo que lidam com a criação e investigação da cena contemporânea em dança.

A convivência com Raul foi ampliando o meu entendimento sobre o papel do intérprete-criador. Na realidade, ao montar os espetáculos, no início da minha convivência com o Programa de Comunicação e Semiótica, eu achava que uma mistura de referências poderia dar conta desta conduta contemporânea. Hoje é claríssimo que não basta misturar e ficarmos no nível de inúmeras colagens. A crítica de dança Laurence Louppe nos fala da idéia de hibridação: “Mistura evoca uma idéia de universalidade que está em harmonia com o tipo de abertura cultural oferecida por correntes mundiais de pensamento com suas idéias sobre alteridade, identidade de grupo e diálogo inter-grupal. Contrastando com isso, o híbrido. Esse híbrido não se situa em nenhum lugar, não é nada. Freqüentemente, ele é totalmente isolado e atípico, o resultado de uma combinação única e acidental. A hibridação funciona muito mais do lado da perda. A hibridação age mais na nucleação dos genes ao subvertê-los e deslocá-los”. (2000: L. Dança2)

Outro dia, conversando com Raul e a nossa consultora de improvisação, Cleide Martins, nos questionamos sobre o que é que há, nesta nossa parceria, que colabora nesta configuração de dois, enquanto ótimas condições de trabalho, voltada para uma produção de pensamento investigativo e da cena? Levantei a seguinte hipótese: a necessidade de ocupação. Dessa forma, o meu olhar lida com composição. Busco decifrar na relação do pensamento lançado possibilidades de diversas ocupações no ambiente que lidam com diferentes níveis de criação. Neste caso, falo de vetores, deslocamentos, aceleração, produção de outros padrões de movimentos e desenhos no espaço, por exemplo. É como se eu fosse criando toda uma geografia deste lugar com seus inúmeros relevos e apontando as necessidades destas diversas relações.

O Raul tem a mão de um cirurgião. No momento em que proponho uma investigação de padrão de movimento no corpo, o seu mergulho gera uma obsessão profunda de auto-investigação na relação com tudo que começa a povoar o nosso ambiente. Tal rigor contamina todo o fazer da cena. Ele libera interações neste ambiente em que todo um trabalho exploratório no próprio corpo ilumina as necessidades das minhas solicitações, liberando um aspecto poético e filosófico. Neste tempo de convivência com este meu parceiro, a sua dedicação ao trabalho de professor baseado na técnica do método de pilates aguçou nele um grande entendimento do corpo. Hoje, ele me ensina sutilezas deste nível de disponibilidade corporal, em um caminho povoado de diferenças. A cada vez que proponho uma fala, sua primeira ignição é a da necessidade de um grande mergulho na experimentação. A conversa entre palavras surge depois. Percebemos que, por mais estranha que seja a minha solicitação de coreógrafa, a formulação de qualquer dúvida se tornará mais precisa após diferentes experimentações e elaborações neste processo criativo que demanda tempo.

À medida que o Musicanoar avança nos seus projetos, ao longo destes anos, nos inserimos em diferentes movimentos representativos de profissionais de dança, que propiciaram diferentes estratégias de atuação conjunta na cidade de São Paulo. Se, enquanto artistas, não nos envolvemos e elaboramos outras estratégias coletivas de organização e condução que venham a atender nossas necessidades, quem irá criá-las? No nosso caso, um exemplo é lutar por subvenções públicas e leis que garantam a subsistência e manutenção de diferentes grupos em projetos de criação, circulação e produção.

Nestes 16 anos muitos movimentos de dança foram criados, desmontados, aglutinados de outros jeitos exigindo de seus participantes conversas e estratégias de permanência da realidade de dança contemporânea. Não cabe agora explicitá-los, porém, existe um aspecto comum entre todos - cada um destes grupos e artistas lidam com uma produção investigativa e de pesquisa de linguagem num fazer contemporâneo. Entendo que o Núcleo de Criação do Dirceu também está ligado a estas reflexões. Expandir modos de organização a fim de gerar compromisso dos governantes na elaboração de política pública de cultura de forma mais eficiente e condizente com nossas necessidades contemporâneas.

É importante esclarecer que o termo contemporâneo não está associado a uma técnica ou estilo de dança. O termo contemporâneo traduz uma ação investigativa na relação das nossas propostas coreográficas que passam por um pensamento e o modo singular como cada grupo ou coreógrafo constrói seus espetáculos. Os espetáculos gerados por estes diferentes criadores nunca são produtos prontos, quer dizer, as apresentações públicas são oportunidades deles testarem suas investigações. Uma vez que estes criadores buscam invenções com outros modos de construção, geralmente, seus espetáculos funcionam como protocolos de laboratórios, resultantes de pesquisas direcionadas para uma linguagem da cena.
Todo conhecimento é uma forma de educação vital. Vivemos porque conhecemos. Por esta razão, entendemos que a arte é um mecanismo co-evolutivo em que a estética faz parte de uma realidade concreta. A natureza também é estética. Estética é lidar com eficiência e, não à toa, as coisas precisam se adaptar para sobreviver. A pertinência da arte age na relação de uma necessidade de expandir uma realidade para permanecer (isto é, sobreviver), conhecer e construir, numa mesma escala temporal, outras possibilidades de se pensar sobre processos organizativos.

O Centro de Criação do Dirceu foi criado em agosto de 2005 pela prefeitura de Teresina, respondendo a insistentes reivindicações da Comunidade do Grande Dirceu, bairro mais populoso da cidade. Esta ação atende a uma urgência colocada por seus munícipes. Isso é uma iniciativa pública com possibilidades de sucesso pelo fato de ser compartilhada e apoiada por uma comunidade que deseja investigar a arte. Esta empreitada vem mobilizando e reconfigurando este ambiente público como um espaço de discussão, troca, trânsito, interação, pesquisa, aproximando artistas de diferentes pólos do Brasil e do exterior para fomentar o pensamento de um fazer estético numa direção contemporânea.

O Núcleo de Criação do Dirceu na estréia de Mapas do Corpo foi competente na articulação entre regiões distantes, que comprovaram que a distância não é um obstáculo para se entrar em contato. Qualquer expansão de pensar outros modos de organização depende da imaginação, inventividade e coragem de se quebrar rotinas e tentar caminhos não experimentados. No Dirceu houve um belo encontro. Caso o modo de articular um pensamento de dança fosse totalmente diferente daquilo que o Musicanoar acredita, com certeza as falas seriam levadas ao vento. Porém, lá em Teresina, percebemos que apesar de cada um dos artistas resolverem em cena suas questões de forma diferente estamos discutindo em cena os mesmos conceitos. Em outras palavras dependemos da capacidade de nós, artistas contemporâneos, viver com riscos e de aceitarmos a responsabilidade pelas conseqüências: cuidados e auxílios mútuos.

No Dirceu, a criatividade não está disponível para linha de montagem, e sim para ações que acionam no coletivo, pensamentos que se cruzam e estimulam encontros que reforçam outras formas de pensar organização. Com os Grupos Residentes, Núcleo de Criação do Dirceu, oficinas oferecidas ao NCD e à comunidade, Mapas do Corpo, Projeto Instantâneo, residências artísticas, espetáculos e palestras, Marcelo Evelin e seus parceiros elevaram Teresina a um ambiente de referência na construção de novos modos de pensar e compartilhar a arte contemporânea.

Não podemos admitir um entendimento de dança contemporânea que margeia em significados devaneios de pessoas sem “praticidade” ou ainda algo supérfluo. Como diz o astrofísico Jorge Albuquerque, dança é uma manifestação de complexidade e evolução, é um reflexo de valores mais elevados que a humanidade tem tentado vivenciar. É assim a tentativa de efetivação de formas elevadas de sobrevivência, formas essas, sabemos, bastante inacessíveis à maioria dos seres humanos, mas potenciais em todos eles.

Transitamos num discurso temporal. Marcas de uma práxis que se constrói a todo instante. Vivemos a ação em tempo real. Desta maneira se defrontam normas e formas. No nosso caso, trilhamos caminhos que apostam em outros tipos de autonomias de dança. Percebemo-nos artistas ativistas que sob outros modos de organizar dança encaramos ações co-adaptativas numa realidade emergente, de caráter urgente. O professor geógrafo Milton Santos nos lembra:

“Há quem prefira dizer que o tempo se unifica, mas não é disso que se trata. O que realmente se dá, nesses nossos dias, é a possibilidade de conhecer instantaneamente eventos longínquos e, assim, a possibilidade de perceber a sua simultaneidade. O evento é uma manifestação corpórea do tempo histórico, algo como se a chamada flecha do tempo apontasse e pousasse num ponto dado da superfície da terra, povoando-o como um novo acontecer. Quando, no mesmo instante, outro ponto é atingido e podemos conhecer o acontecer que ali se instalou, então estamos presenciando uma convergência de momentos”. (2008:196)

Foi um privilégio co-habitar provisoriamente o mundo do Dirceu, um espaço brotado da experiência enquanto existência. Como nos lembram as águas do rio Poti e Parnaíba - um longo processo de encontros que deságuam num grande oceano.

Helena Bastos é bailarina, coreógrafa, professora/USP e pesquisadora.

Referências Bibliográficas:

GREINER, Christine (2005). O Corpo. Pistas Para Estudos Indisciplinares. São Paulo: Annablume.

KATZ, H.(1994). Um, Dois, Três: A Dança é pensamento do Corpo. FID: Belo Horizonte

SANTOS, Milton (2008). A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ªed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque (2006). Teoria do Conhecimento e Arte - Formas de conhecimento - arte e ciência numa visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

Referência:
http://idanca.net/lang/pt-br/2008/09/18/corpos-entre-margens-2/8937/

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