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sábado, 1 de agosto de 2009

DANÇA-INTERVENÇÃO: proposições artístico-políticas para corpos adolescentes sujeitados. A Dança do Ventre na Situação de Sujeição






“Porquanto como conhecer as coisas senão sendo-as?”
Jorge de Lima[1]

A intenção de apresentar a dança do ventre como uma ação propostiva dos modos de organização de corpos adolescentes sujeitadas pelo abuso sexual, nasce da possibilidade de discutir a dança em uma moldura pouco habitual, em um arranjo que aproxime o corpo que dança de ações propositivas e contextualizadas, ou seja, em discussão corpo-ambiente-mundo. Trata-se de um exercício de expansão do modo de atuação, já que se trata não somente da dança enquanto intervenção do corpo, mas também um modo de atuar que estabelece outras percepções e relações dos corpos-sujeitos[2] e corpos-institucionais[3] envolvidos no enfrentamento da violência sexual.

Assim, pois, é relevante aqui tratar a dança do ventre como produtora de questões, sejam elas de natureza teórico-histórica, a exemplo de: qual o entendimento de corpo presente nos espaços institucionais que adotam procedimentos dessa ordem, no trabalho com adolescentes sujeitadas pelo abuso? ; ou como produtora de questões de natureza histórico-política: as ações adotadas pelos corpos-sujeitos pesquisados tenderiam a promover um modo de atuar distinto do desenvolvido pelos corpos-instituições, aos quais são vinculados? Ou seriam uma repetição da mesma rede histórica daquilo que se fazem parte? Questões que apontam para o grau de complexidade das relações envolvidas e solicitam um processo de indagação contínua.

A dança tem como local imediato de ocorrência o corpo, que opera em contínua troca de informações com o ambiente. Desconsidere-se, desde já, qualquer forma de entendê-la como uma ação descolada do seu lócus de atuação. Em vez disso, a dança é aqui entendida enquanto ação-intervenção que colabora para o entendimento do corpo-sujeito-ambiente como um sistema integrado, processual e co-existente. Uma vez que “não há dança a não ser no corpo que dança. Não há dança fora da semiose” (KATZ, 2005: 140).

A formulação que contribui para apresentar a dança do ventre como uma construção incessante no corpo, implica em reconhecê-la enquanto provisoriedade – soluções provisórias e possíveis ajustamentos do processo do fazer-se corpo. Ao mesmo tempo em que, a dança denota possibilidades de soluções às demandas a ela solicitadas. Ainda que sejam da natureza do corpo ou não. Note-se que esta proposição - a dança do ventre - apresenta-se enquanto articuladora de ações-atuações nas instâncias dos corpos-sujeitos e corpos-instituições.

O entendimento de corpo presente nos serviços institucionalizados às adolescentes sujeitadas ao abuso sexual na cidade de Salvador, a exemplo do CEDECA[4] e Projeto Viver[5], se configura a partir de uma lógica cartesiana que separa a mente do corpo. Baseia-se no sistema conceitual de uma Razão Universal, que prioriza os processos mentais nos serviços prestados e desprivilegia o corpo como local de cognição. Neste modo de operar, é comum associar o corpo apenas como local de introjeção do abuso e a mente como local de (re)elaboração do trauma sexual.

Esta postura colabora para a segregação do corpo colocando-o enquanto objeto a ser descrito nos protocolos de perícia médica. Uma forma de entender o corpo que se fixa na informação do abuso e o classifica pelos tipos de lesões e sinais corporais encontrados. Com efeito, às vezes, de atender a necessidade de se comprovar o ato delito, visto que a violência sexual é considerada um crime contra os costumes[6].

A busca do detalhamento de sinais corporais que materializam o abuso sexual engessa a compreensão do corpo. Fixa-o, classifica-o como categoria geral, perpetuando-o enquanto representação descolada do ambiente e do tempo. Cindido da sua própria história e do fluxo dos acontecimentos. Banido do estado de provisoriedade e dos aspectos circunstanciais que o constituem transformação. Torna-se descrição.

Em desacordo com essa maneira de entender e atuar no corpo, o trabalho desenvolvido com a dança do ventre propõe apresentar um entendimento de corpo, distinto do adotado pelos corpos-instituições. A começar pela ruptura com a episteme cartesiana e a tendência de categorizá-lo como um fenômeno genérico. Para tanto, assume a dança como um pensamento implementado, ou seja, uma experiência sensório-motora que opera no contínuo corpo-mente, sem a separação de movimento e pensamento. Onde cada ação motora da dança se configura como um pensamento. Pois como descreve Katz, “quando a dança acontece num corpo, o tipo de ação que a faz acontecer é da mesma natureza do tipo de ação que faz o pensamento aparecer” (2005, p.40).

“Quando o corpo pensa, isto é, quando o corpo organiza o seu movimento com um tipo de organização semelhante ao que promove o surgimento dos nossos pensamentos, então ele dança. Pensamento entendido como o jeito que o movimento encontrou para se apresentar” (KATZ, 2005. introd).

Entender a dança como pensamento do corpo favorece indicar àqueles corpos sujeitados o redirecionamento de posições e o exercício de questionamentos relacionados às ações de intervenção aos quais foram submetidos. Nessa hipótese, reside o modo empregado para designar pensamento: “uma maneira de organizar informações – uma ação, portanto, e não o que vem depois da ação” (KATZ, 2005, introd.).

A importância dessa proposta reside no sentido do pensamento como a síntese temporária das relações entre as informações que transitam no corpo que dança no apronte do acontecimento. A particularidade dos acionamentos e a transitoriedade das circuitações corporais provocam a exposição de soluções provisórias de ajustamentos no mundo. Troca-se o sentido do corpo como produto genérico e sujeito a descrição, pela ação de ajustar-se, transformar-se.

Corpo-dança-sujeição, uma co-existência possível

A percepção dos corpos na condição de corpos-sujeitos que co-existem no mundo vai ajudar nos processos de reconfiguração desses mesmos corpos. Em nenhum momento se pretende minimizar as questões do abuso, mas sim revertê-las em condições favoráveis aos corpos sujeitados. É nessa mesma ação que se dá a reorganização da ação enquanto abuso. No fazer e reconhecer desse trauma sexual[7] sem negá-lo, mas trazê-lo para a convivência, nas correlações funcionais e tratá-lo no mesmo espaço de ocorrência. Pois baseado nas concepções do indivíduo, se faz preciso:

“[...] manter o que se passou na dispersão que lhe é própria, é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios-ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” ( FOUCAULT, 2006, p. 21).

Com este propósito, as ações de dança do ventre desenvolvidas com corpos-sujeitos nos anos de 2004 e 2005, se prestaram como proposições subversivas na medida em que requisitaram o corpo enquanto local de implementação de um outro tipo de informação; considerando a dança e o abuso como constitutivos mútuos. A partir de uma dinâmica de relações onde fosse possível a simultaneidade de ocorrências, sejam elas enquanto uma coleção de passos sobrepostos, ou até mesmo idéias, pensamentos ou imagens; os movimentos de dança trabalharam para infringir o entendimento do corpo resumido apenas como local de introjeção do abuso.

Considerar a simultaneidade das ocorrências no e pelo corpo possibilita deslocar a fixidez da informação/sujeição e propor a lógica de organização do assujeitamento pela convivência. O corpo renegocia as ocorrências e se constitui a todo instante, de modo que, “não há um resultado único e nem último” (SETENTA, 2008, p.39). Uma condição que faz pensar o corpo em metamorfose e questionar os modos de tratar a violência nos serviços prestados pelos corpos-instituições. Ora, se o corpo “como processo, nunca está pronto” (GREINER, 2003, p.142), por que insiste-se no grifo[8] do corpo sujeitado? Validando-se a insistência, fixa-se a sujeição como se fosse possível ignorar a natureza simultânea/múltipla do corpo; desconsiderando-a significa dizer que o corpo somente pode ser tratado em sua complexidade constitutiva, a partir dos elementos que o consubstanciam, e mesmo assim sempre como resultado provisório.
Dançar com o assoalho pélvico – lócus do acidente- em continuidades e descontinuidades com outras informações, implica numa abertura de negociação dessa parte do corpo com demais partes – tomando-a como parte de direito. O corpo-sujeito aberto e propondo um exercício de reorganização do abuso, de certo modo, abre-se para convivências e negociações de distintas informações inclusive as de sujeição.


É interessante o exercício de correspondências. Na intervenção proposta com a dança do ventre, o assoalho pélvico é um o ponto de recordação do abuso sexual e também um ponto de ignição motora dos movimentos. Porém ao olharmos para o desenho do movimento proposto e a condução das relações que se seguem, o acionamento não se fixa apenas neste local. Não pára ai, se encaminha em fluxos. Existe um diálogo entre muitas partes do corpo, conferida pelo caráter articular e não linear adotado nos procedimentos da dança. Um traçado em um caminho sem fim, uma agulha de costura desenhando caminhos contínuos e descontínuos, com ocorrências que são insulares ao quadril e seu entorno e outras não. Logo, as movimentações propostas são resultantes de uma mobilidade de poder. Oferece uma outra dinâmica de atuação que não reforça a região pélvica como parte determinante dos movimentos e nem tão pouco, retira-a da cena como parte deslocada do corpo.

Convém, no entanto, explicar o entendimento de poder aqui implicado. Ele configura-se enquanto domínio compartilhado, vinculado às escolhas dos acionamentos da dança do ventre. Um poder que não ocupa um determinado lugar, que não se encerra em um ponto específico do corpo que dança. Se exerce na mobilidade dos acionamentos da dança, nas relações dos movimentos. Ora disparado pela região do quadril em movimentos sinuosos, ora pelos movimentos dos braços e das mãos. Compartilhamento da estrutura da dança em rede, em acionamentos contínuos. Desmonte do entendimento do quadril como o foco central da dança.

Para o filósofo francês Michel Foucault, “o poder não é algo que se detém, como uma propriedade, que se possuí ou não. Não existe de um lado os que têm poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados” (2006: p. XIV). O que significa dizer que o poder se efetua no caráter relacional e por conseqüência, ao entender o exercício da mobilidade de poder, as ações contra as sujeições podem ser feitas de vários lugares e relações.

Aqui temos um campo de informação da dança que não se encerra na descrição. Apresenta uma proposição, suscita analogias e questões. Por isso, seja interessante pensar e repensar na maneira como essa lógica de atuação motora pode ser trabalhada no campo da violência sexual - talvez maneiras de reformular e encaminhar questões referentes à sujeição? O corpo-sujeito por equivalência, tenderia transpor o exercício de diálogo dos pontos de acionamento da dança no modo de atuar no abuso, considerando multiplicidade de ocorrências, a mobilidade de poder e a transitoriedade dos acontecimentos como uma condição de estar no mundo. Uma adoção de uma ação, que refuta o determinismo embutido nas proposições institucionalizadas.

Algumas Considerações

Convidar o corpo que dança para a cena do abuso, configura-se como proposição subversiva da dança do ventre. Um modo de atuar que garante ao corpo-sujeito o seu direito ao corpo. Situação descrita por uma adolescente assistida pelo CEDECA: “a dança do ventre, me fez ver que eu tinha um corpo, como um direito” [9] . Uma prática que associa a ação motora que o corpo executa a um fazer que implica na adoção de uma jurisdição do corpo. A noção de corpo aqui proposta compreende que “cada corpo é um caso particular, no próprio sentido jurídico do termo. Assim, cada corpo corresponde uma espécie de jurisdição” (GREINER, 2005:27). Ao mesmo tempo em que afirma a singularidade de cada corpo-sujeito, ao adotar a jurisdição do corpo como um “dizer do direito”. Que se utiliza dos enunciados dos seus arranjos específicos como garantia de princípios.

Para tanto, é necessário deslocar as ações de dança do ventre da sua moldura habitual, enquanto entretenimento e dança étnica, e propor outros modos de atuar nesse fazer e agir no mundo. Provocar nos corpos-sujeitos o redirecionamento e deslocamento de posições e questionamentos relacionados às ações de intervenção aos quais foram submetidos. Sobretudo, ao se pensar que “as idéias se organizam no corpo, o corpo assim formado [...] sempre age no mundo a partir de uma determinada coleção de informação” (SETENTA, 2008:30). Levar em consideração a colocação do abuso em discurso, analisá-lo de forma crítica-reflexiva: como é tratado, quem fala e os pontos de vista de que se fala. Propõem perguntas e promovem outros modos de encaminhar e meios de intervir em corpos-sujeitos e corpos-instituições.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROS, Manoel. Compêndio para uso dos pássaros. 4°ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GREINER, Christine. (2005) O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
______. Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003.
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006.
KATZ, Helena. Um, Dois, Três. A Dança é o Pensamento do Corpo. Belo Horizonte:Helena Katz, 2005.
OLIVEIRA, Maria de Castro. A Dança e o Verbal nos Processos de Comunicação do Corpo. 2002. 95 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.

[1] BARROS, Manoel de. Compêndio para uso dos pássaros. 4°ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. Pg. 51.
[2] Corpos-sujeitos - termo utilizado para se referir as adolescentes vítimas de abuso sexual, alunas das oficinas de dança do ventre e selecionadas pelo CEDECA e Projeto Viver nos anos de 2004 e 2005. Adolescentes na faixa de 12 a 18 anos, oriundas na grande maioria de bairros periféricos da cidade de Salvador.
[3] Corpos-institucionais – termo utilizado para se referir as instituições que prestam serviços de atendimento às pessoas em situação de violência sexual, a exemplo do CEDECA e Projeto Viver.
[4] CEDECA – Centro da Defesa da criança e adolescente/ Bahia. Instituição não governamental que presta serviços às pessoas em situação de violência sexual.
[5] Projeto Viver – Órgão da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado da Bahia, situado no Departamento de Polícia Técnica do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, que presta serviços às pessoas em situação de violência sexual.
[6] Os crimes contra os costumes estão previstos no Título VI da parte especial do Código Penal Brasileiro. A exemplo do estupro e atentado ao pudor, classificados como hediondos pela lei 8.072-1990.
[7] Trauma Sexual-termo utilizado pelas instituições e profissionais que prestam serviços às pessoas vítimas de violência sexual, para remeter a situação do abuso.
[8] O entendimento proposto para o uso do termo grifo refere-se à tendência em fixar a sujeição como uma evidência que se destaca frente às outras ocorrências do corpo. Foca-se no assujeitamento como o “acontecimento” suspenso da sua provisoriedade.
[9] A. O. Adolescente assistida pelo CEDECA/BA e participante das oficinas de dança do ventre ( com 17 anos, em 2005).

Sobre a autora: Márcia Mignac
Licenciada em Dança, Mestre em Dança e Doutoranda do Programa de Comunicação em Semiótica da PUC-SP.

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