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quarta-feira, 15 de julho de 2009

A improvisação em dança: um processo sistêmico e evolutivo.














A improvisação em dança tem sido um recurso usado por alguns coreógrafos na criação de suas obras, ou em parte delas. Também é utilizada por professores em escolas de dança ou mesmo por algumas companhias profissionais na preparação de dançarinos para o palco. Contudo, a concepção/utilização da improvisação em dança é, às vezes, portadora de mal-entendidos. Como diz Helena Katz: “A improvisação em dança é, muitas vezes, considerada como uma ‘terra sem regras’, onde há o pressuposto de uma erupção permanente de novidade e onde a liberdade passa a ser a garantia da produção do novo”.

A partir do levantamento bibliográfico que fizemos sobre o tema, podemos dizer que a questão da improvisação aparece da seguinte maneira:
como um capítulo que compõe os manuais de dança moderna ou contemporânea;
em livros de Expressão Corporal, principalmente surgidos na década de 70;
em livros mais especializados, a partir dos últimos 15 anos, com maior ênfase editorial nos 5 anos mais recentes;
em artigos e revistas especializadas, há cerca de 25 anos.

Porém, é o como aplicar o recurso improvisação que aparece nas obras publicadas, principalmente entre 1970/85. Listas de sugestões de temas, exercícios de dinâmicas grupais, músicas, etc. são apresentados ao longo de diferentes obras. Na bibliografia pesquisada, é sobretudo a partir da última década que vamos encontrar trabalhos mais interessados em tentar caracterizar o processo de improvisação em dança.

Este trabalho procura trazer uma reflexão mais abrangente da improvisação. Em primeiro lugar, aqui ela é vista não apenas como um recurso, mas como a própria dança realizada no instante da sua execução (em oposição à dança coreografada que acontece por obedecer a um planejamento anterior).

Esta não é uma diferenciação qualquer. O entendimento das peculiaridades da improvisação enquanto espetáculo de dança e da improvisação como recurso, ferramenta para a realização de um espetáculo de dança, aponta para questões que, hoje, mobilizam criadores no mundo todo.

Nesse sentido, a Teoria Geral de Sistemas (T.G.S.) (1) foi escolhida por apresentar-se como a teoria capaz de explicar como partes de um sistema se relacionam com o todo, como esse todo se articula, como cada parte é também um todo em relação a outras subpartes. Ou seja, a Teoria Geral de Sistemas aparece aqui como o instrumento capaz de apresentar a Dança e a Improvisação numa relação específica.

Para tanto, torna-se necessário partir de uma visão ontológica (2) de mundo, em que seja considerado que a realidade é formada por sistemas e que a dança pode ser vista como um sistema complexo, formado pela relação dos subsistemas: movimento e corpo. Vamos utilizar aqui a teoria de sistemas de Mário Bunge.

Mário Bunge, filósofo e físico teórico, propõe a construção de uma Ontologia Científica (1979:3), baseada na chamada Teoria Geral de Sistemas. Esta prototeoria se propõe a ser uma ferramenta de apoio ao desenvolvimento de conhecimentos diversificados. Apresenta-se como um grande esforço interdisciplinar para transdisciplinar o conhecimento, ou seja, criar conceitos comuns ou novos a várias áreas de conhecimento, inclusive em áreas aparentemente inconciliáveis. Bunge define, assim, Sistema por uma tripla ordenada:
S =
C = coisa, algo que é candidato a sistema.
C n A = Ø, ou seja, C interseção com A é igual a conjunto vazio.

Portanto, C é diferente de A. A é o meio ambiente de C. Por outro lado, é preciso garantir que essa coisa C tenha relações com o meio ambiente, ou seja, o conjunto R fala não somente de C, ou de A, mas fala também das relações possíveis entre C e A (isto é o que garante a noção de sistema aberto).

Vamos exemplificar este conceito usando a própria dança para isso. O sistema dança troca com o meio ambiente. Qual é o meio ambiente? O mundo. Essa troca é uma porta de vai-e-vem que modifica continuamente dança e mundo, num processo de mão dupla permanente. Não se pensa em um sem o outro, pois a dança depende de um corpo e esse corpo existe por processos de relacionamento com o mundo.

Em outros termos, dentro do sistema dança, um corpo que dança recebe essas informações do mundo, informações estas que passam a ser internalizadas pelo corpo que dança. Esse corpo que dança continua a trocar as informações internalizadas, e que se modificaram, com o mundo. Todo o tempo as trocas são permanentes entre o interno e o externo e é a isso que se chama de co-evolução sistêmica. Por esta razão, a comunicação entre ambiente e corpos se estende ao longo do tempo.

Em síntese, quando se fala em internalização, estamos dizendo que informações que estão no meio ambiente entram em um corpo que dança e a isso que estamos chamando de sistema dança: um corpo que dança, um ambiente e as relações de troca permanente entre eles.

Dança como sistema

O corpo humano é um sistema aberto dissipativo (3) que transforma a energia em um meio ambiente. Para permanecer, tornar-se evolutivo, o corpo precisa aprender a explorar e lidar com seu meio ambiente, o que significa desenvolver diferentes formas de comunicação, tanto físicas quanto culturais. Ou seja, o corpo humano, por ser um sistema aberto, tem a capacidade de receber e selecionar informações. Esta seleção de informações tem o objetivo de torná-lo mais apto a sobreviver no ambiente que é seu. A isto Dawkins chama de evolução, ou seja, à possibilidade de um corpo aprender a selecionar informações que lhes garantam a sobrevivência.

Vamos considerar o Sistema Dança a partir da seguinte tripla ordenada (com base na notação de Mário Bunge):

Comecemos por S =
para, em seguida, substituir por
Dança (D)=

Ou seja, D significa um Sistema Dança, que é igual ao elemento movimento (M), aqui tomado como a “coisa” da dança; o elemento corpo (C), aqui tomado como o ambiente onde este movimento vive; e o elemento R, que identifica as relações internas em M e em C e as relações entre M e C.

Em resumo: trata-se de um sistema (D) formado pelo movimento (M), que opera no meio ambiente corpo (C), através de relações (R) estabelecidas entre (M) e (C) e dentro de (M) e (C).

Sistema Dança: formas de organização.

Para a realização deste trabalho, partimos de uma hipótese ontológica/sistêmica, pela qual se admite que a natureza é formada por sistemas e processos. Estes sistemas têm vários níveis de complexidade. O corpo humano é um sistema, bem como o movimento no corpo, da mesma forma que a dança pode ser vista, também, como um sistema.

No primeiro momento, a dança foi definida como um sistema composto basicamente pelo movimento em sua relação com o corpo. Aqui, faz-se necessário distinguir duas situações que podem ocorrer quanto à organização do Sistema Dança:
a) Os movimentos realizados pelo corpo que dança obedecem a um planejamento discriminado enquanto tal, ou seja, são organizados previamente. A isto se chama coreografia. Nesta situação, os movimentos/eventos são escolhidos, codificados, planejados por um coreógrafo e executados por um bailarino. Em geral, cabe ao coreógrafo a seleção e a reunião das informações que constituirão a coreografia e ao dançarino, a sua execução. Na contemporaneidade, proliferam os coreógrafos/dançarinos, solistas ou intérpretes de suas próprias criações, ou seja, situações onde os dois papéis são desempenhados num mesmo corpo.
b) Os movimentos são realizados pelo corpo que dança no momento de sua execução, mas sem obedecer a nenhuma seleção prévia de frases ou seqüências de movimento, como nas coreografias. Neste caso, podemos acrescentar que o tempo para a aprendizagem da programação de movimento é substituído por um tempo para a aprendizagem da técnica de usar as informações do corpo em combinações que buscam evitar a repetição. A forma dessa dança deve emergir no momento da ação. Vamos chamar a esta forma de organização de dança não planejada de improvisação em dança.

A improvisação em dança, muitas vezes, é utilizada pelo coreógrafo como ferramenta de organização de seus movimentos que, depois, ele transforma em coreografia. Mas, a improvisação em dança pode ser tomada como uma forma e não uma ferramenta de organização do Sistema Dança, podendo ser considerada, também, como um tipo de espetáculo e não somente como um meio de produzir material para coreografias.

Entre os muitos dançarinos/improvisadores que podem ser citados estão a norte-americana Jennifer Lacey, David Zambrano, Steve Paxton, Lisa Nelson, e, em São Paulo, Zélia Monteiro, Tica Lemos, Cristian Duarte e a Cia Nova Dança 4, dirigida por Cristine Paoli Quito. Cabe, porém, ressaltar que tanto a dança coreografada como a dança improvisada pertencem a um único sistema - o Sistema Dança. Podemos dizer, também, que um sistema sempre contém um pouco do outro, ou seja, no movimento não planejado existem aspectos que compõem a estrutura do movimento planejado e vice-versa. E esse se constitui como um aspecto muito importante a ser considerado.

Ao tomarmos o Sistema S = , ou melhor, D = , em sua evolução no tempo, podemos considerá-lo como um gerador de processualidade associado ao corpo que dança. Essa processualidade pode ser formada por componentes deterministas (5) f(t) e componentes não deterministas n(t). Temos, então: g(t) = f(t) + n(t), onde:
g = processualidade
f = componente determinista
n = componente não determinista
t = tempo

O mais importante é não perder de vista que estes dois componentes aparecem nas duas situações anteriormente citadas. No caso da dança coreografada, apesar dos movimentos serem planejados anteriormente, existem, na execução pelo dançarino nuances de estilo pessoal, incertezas, pequenas falhas, dificuldades de execução, ou seja, há presença de n(t) componentes não deterministas. Afinal, a dança acontece em tempo real. No caso da improvisação, apesar de não existir um planejamento a obedecer desde o primeiro até o último movimento, o determinismo f(t) emerge a partir de vários fatores, tais como: condições anatomofisiológicas do corpo que dança, gramática(s) já existentes no corpo, estilo pessoal do dançarino, e hábitos, principalmente os criados pela repetição da técnica em improvisação.

Existe, como vimos, uma certa dose de determinismo impresso em todos os corpos provindo de sua própria natureza evolutiva. Porém, é um determinismo que não fecha a possibilidade do diálogo com o não-determinado pela evolução, está presente em todos os corpos e tem a aptidão de dialogar com a produção do novo. Quando se olha um corpo de um dançarino, muitas vezes se reconhece o tipo de formação e treino pelo qual passou, através dos elementos que foram incorporados como traços reconhecíveis e que identificam a sua origem. Ou seja, não se tem liberdade total, tem-se um determinismo de certa dose, que está impresso no corpo e que vai permitir a produção do novo. O determinismo é aqui empregado no sentido de que de acordo com certas condições iniciais de treinamento, o corpo incorpora os padrões de movimentos a ele correspondente.
Geralmente, não se associa determinismo à improvisação, o que causa dano à própria noção de improvisação e ao seu emprego. Por desconhecimento, a improvisação, para grande parte dos autores, continua sendo uma fonte de criações e inovações livres de qualquer codificação do corpo – o que, como vimos, não passa de ficção.

A questão central é justamente essa: a dosagem de liberdade e a dosagem de determinação que fazem parte da improvisação.
Onde está a liberdade num corpo que carrega a história de todos os corpos, com todas as restrições e hábitos da história de quatro e meio bilhões de anos? As restrições, além de serem selecionadas por trajetórias biológicas evolutivas, podem ser identificadas também nas trajetórias culturais. Basta atentarmos para os processos co-evolutivos para lembrarmos que as trocas entre um organismo e seu meio não estancam para percebermos o tanto de cultura que existe na natureza e vice-versa. Então, de que liberdade estamos falando?

A liberdade da qual estamos falando é a de combinações entre restrições e não-restrições. A improvisação é um instrumento que mexe exatamente na dosagem de liberdade de arranjos de movimentos entre restrições e não-restrições. O número de tais arranjos é muito grande, podendo satisfazer a uma função exponencial (6). Cada vez que uma coisa está sendo combinada com outra coisa, todo o sistema precisa se reconfigurar, criando uma grande quantidade de variáveis.

Por isso, a improvisação é tão poderosa. Cada ignição combinatória possibilita que todo o sistema dialogue e se posicione face a essa nova combinação. Essa nova combinação irriga e desestabiliza todo o sistema. Ou seja, a improvisação é desestabilizadora do sistema e dialoga com as determinações lá existentes. Porém, o sistema luta para não ser desestabilizado; os sistemas querem permanecer. Para tanto, precisam usar os mecanismos de sobrevivência, ou seja, impor os seus hábitos aos elementos novos que chegam e que querem combinar hábitos, repropor jogos de montagem nas restrições evolutivas.

Um sistema que é capaz de improvisar está mais apto a enfrentar uma situação nova. Quanto mais tempo um sistema permanece isolado, ou seja, sem trocar com o ambiente, mais restrições à mudança vai desenvolver. Mecanismos de sobrevivência como hábitos e jogos de montagem podem ser considerados como formas de comunicação indispensáveis a um sistema que busque continuar aberto e em crescimento de complexidade. Por isso, a improvisação é uma conquista que precisa de tempo, precisa ser temporalizada naquele sistema.

Bibliografia:

Bertalanffy, Ludwing (1975) Teoria Geral dos Sistemas. Edit.Vozes RJ
Bunge, Mário (1979) Treatise on Basic Philosophy. Vol 4: A World of Systems Cap 1 D. Reidel Publ. Co.
Dawkins, Richard (1989) The Selfish Gene. Oxford Universty Press. Em Português: O Gene Egoísta (1989) trad. Geraldo H.M. Florsheim. Ed: Itatiaia da Universidade de São Paulo.
——————— (1995) River Out of Eden. New York: Basic Books. Em Português: O Rio que saía do Éden (1996), Trad. Alexandre Tort. Rio de Janeiro; Ed. Ciência Atual Rocco.
Katz, Helena (1994) Dança é o pensamento do Corpo . Tese de doutoramento defendida no Programa de Semiótica da PUC- SP.
Prigogine, Ilya & Stengers I. (1984) A Nova Aliança. Ed. UnB.
—————— (1988) O nascimento do Tempo. Ed. 70 RJ.
Vieira, Jorge Albuquerque (1994) Semiótica, Sistemas e Sinais. Tese de doutoramento defendida no Programa de Semiótica da PUC SP.
Vita, Luis W. (1965) Introdução a Filosofia. Ed. Melhoramentos. SP.

(1) Foi oficialmente discutida por Bertalanffy, em seu livro clássico chamado Teoria Geral de Sistemas (1930). Foi utilizada mais recentemente em outras áreas por C. Shannon, na teoria da informação; N. Wiener, na área da cibernética e Ilya Prigogine, químico, prêmio Nobel de 1977.
(2) Ontologia – “Estudo do ser enquanto ser, com independência de suas determinações particulares, ou seja, ciência do ser considerado em si mesmo, independentemente de seus modos ou fenômenos. Em termos gerais, portanto a ontologia se ocuparia do ser, porém, não deste ou daquele ser concreto e determinado, senão do ser em geral, do ser na mais vasta e ampla acepção dessa palavra”. (Vita; 1965:24).
(3) Os sistemas podem ser assim classificados: conservativos e dissipativos. Sistema conservativo é aquele em que a sua energia é considerada constante, ou seja, a energia se transforma dentro dele, mas ele não se altera e nem a perde. Sistema dissipativo é aquele em que há perda de energia, ou seja, um componente dessa energia, por motivo de atrito ou outras dificuldades, se transforma em calor e se dissipa pelo espaço mais frio, sem retorno, tornando-se uma fonte de entropia (Prigogine, 1994).
(4) O corpo humano pode também ser considerado como um sistema. Quando isto acontece podemos dizer que: o corpo (constituído por vários subsistemas, inclusive o cérebro), opera num ambiente físico e cultural,através de uma relação co-evolutiva. Ou seja, o corpo age sobre o ambiente e o ambiente age sobre o corpo, num trânsito permanente.
(5) Determinismo é uma tese ontológica que acredita que podemos ter uma previsibilidade sobre os fatos que irão ocorrer a partir de informações sobre seus estados inicias. Ou seja, enquanto o processo estocástico é regido por probabilidades, o processo determinista é regido por uma lei precisa, que permite a um observador prever exatamente o que vai acontecer. A presença da lei determinista é característica do Determinismo Ontológico.
(6) Função exponencial do tipo potência é uma função em que a base é o número real maior e diferente de 1, e o expoente é a variável independente x, ou seja, f (x) = ax . A função pode ser crescente ou decrescente (Machado, A; 1986).

Autoria do texto:Cleide Fernandes Martins é pesquisadora na área de dança, interessada, sobretudo, no tema improvisação. Bailarina/improvisadora, desde 1970, com formação teórico-prática na técnica de Rudolf Laban, ministrada por Maria Duschenes, participou de diversas apresentações de improvisação realizadas em exposições, bienais e museus, nos anos 70 a 90, em São Paulo. Concluiu mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica, da PUC/SP, onde apresentou a dissertação: Improvisação em dança: um processo sistêmico e evolutivo, em agosto de 1999. Concluiu doutorado no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica, da PUC/SP, onde apresentou a tese: Improvisação Dança Cognição. Os processos de comunicação no corpo, em agosto de 2002. Atualmente é consultora teórica-prática de improvisação do grupo de dança contemporânea Musicanoar, de São Paulo. e-mail: cfmartin@uol.com.br.

Fonte:http://idanca.net/lang/pt-br/2003/01/01/improvisacao-em-danca-sistemas-e-evolucao/15/

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